A construção do cristianismo

É bem verdade que o texto que se segue poderia sofrer objeções do gênero: quem não crê, não tem a capacidade de compreender a palavra Sagrada. E tal asserção, abalizar-se-ia tanto nas palavras de Agostinho: “Não procures entender para crer, mas crê para entender, porque, se não credes, não entendereis”, quanto nas de Anselmo: “Não busco compreender para crer, mas creio para compreender”. Contudo, minha proposta não é fazer uma crítica à fé em si, mas discutir os pressupostos histórico-filosóficos do cristianismo. Tampouco se trata de uma aula ou uma prescrição dogmática. Além do mais, para tais objetores, eu poderia usar as palavras de outro baluarte do cristianismo, Tomás de Aquino, para quem o fideísmo cego não é plausível: “A demonstração de Deus é do domínio da filosofia; a razão aqui impõe, em todo o seu rigor, a plenitude de suas exigências lógicas.”

Ressalvas feitas, entremos propriamente na reflexão. E para isso, nada mais pertinente do que analisarmos (mesmo que superficialmente) o livro que sustenta a doutrina cristã. É bem provável que a maioria dos crédulos, quando questionada sobre sua fé, utilize a Bíblia como instrumento de defesa. Por isso, cabe a nós colocar em xeque a maneira como a sagrada escritura foi tecida.  

Comecemos com o Velho Testamento. Quem é versado em estudos mitológicos sabe que grande parte do Antigo Testamento foi “inspirada” nos mitos gregos e do antigo oriente (por exemplo, a história de Noé, “inspirada” no mito de Deucalião: Quando Zeus resolveu valer-se dos dilúvios para destruir a humanidade, que deveria ser punida pela maldade que demonstrava, Prometeu avisou a Deucalião e a sua esposa, Pirra. Disse-lhes que construíssem uma arca de madeira e colocassem nela um casal de cada espécie animal. Eles flutuaram nessa arca durante nove dias, até desembarcarem no alto do Monte Parnasso. Quando as águas desceram, os que estavam na arca eram as únicas criaturas vivas que restavam na Terra). Além disso, diferentemente do que exalta a canção católica “Deus dos pobres e do povo sofredor”, Javé está longe de ser um exemplo de bondade e comiseração, já que a primeira metade do “Livro Sagrado” está ensopada com o sangue dos desobedientes à Sua palavra.  

Em relação ao Novo Testamento, é notável a influência da filosofia “socrático-platônica”. Grande parte dos filósofos da Patrística (em especial Agostinho) construíram os andaimes teóricos do cristianismo, conciliando a filosofia metafísica de Platão com os dogmas da religião emergente. É a partir dessa constatação que Nietzsche afirma que “o cristianismo é platonismo para as massas”. Entre alguns genealogistas, é certo que a divindade de Jesus foi construída por Paulo de Tarso (que, aliás, nunca encontrou pessoalmente com Jesus). É evidente que tal construção não é uma trama ardilosa de Paulo, mas sim o trabalho de um homem de uma mentalidade bem específica do Império Romano, com propósitos sociais. Outro ponto sobre o Novo Testamento: alguns historiadores afirmam que os quatro evangelhos canônicos se tornaram canônicos justamente porque, além do valor teológico, apresentam uma roupagem mais adequada que os outros não incorporados, chamados apócrifos: os que sugerem o envolvimento afetivo de Jesus com Maria Madalena, por exemplo, não entraram no Cânone.

Sob o ponto de vista histórico, o cristianismo chegou até a contemporaneidade (além do valor teológico, evidentemente) por fatores políticos. Afinal, nos primeiros séculos da nossa era, muitas religiões disputavam a hegemonia, mas Constantino (que em 313 concedeu liberdade de culto aos cristãos) e Teodósio (que em 380 estabeleceu o cristianismo como religião oficial do império romano) não tiveram escolha: para sustentarem o poder de Roma, optaram pela “doutrina da humildade e da salvação da alma”. Depois disso, com o poder instituído da Igreja Católica (vale lembrar que na Idade Média 1/3 das terras da Europa pertenciam à Igreja), ficou difícil contestar a religião vigente.

Sobre a criação do universo, mesmo com as teorias científicas sobre o Big-Bang, por exemplo, alguns crédulos sustentam que o mundo, conforme a tradição bíblica, fora gerado pelo Verbo divino em seis dias (é curioso que Deus, onipotente, precise de um dia para descansar da sua labuta criativa). Outros, por sua vez, tentam conciliar a teoria do Big-Bang com a criação divina do mundo, afirmando que mesmo que o universo tenha surgido de uma explosão cósmica, seria necessária uma Entidade anterior para “juntar as partículas”. O cristianismo não se propõe a dar explicações acerca da teoria criacionista. Por isso, é plausível a existência dos que creem que o homem fora feito do barro e a mulher, da costela do homem. Contudo, boa parte dos crédulos admite o caráter alegórico dessa passagem do “Gênesis”. Admite que Deus dissera ter feito o homem do barro porque, de outro modo, o povo daquela época não compreenderia. Se Ele dissesse que tomou algumas partículas de carbono, nitrogênio, água, ferro, cálcio, potássio e compôs o código genético de tal forma que cada ser vivo se reproduzisse conforme sua espécie, ninguém teria entendido. É verdade também que alguns cientistas cristãos, constatando que não poderiam “enfrentar” Darwin, criaram o conceito de “Design Inteligente”, uma tentativa de manter as teses criacionistas sem, contudo, negar a “evolução das espécies”. Na verdade, admitindo o caráter metafórico da criação divina do homem, seria preciso encontrar outra explicação para o seu surgimento no mundo. E é nisso que têm se empenhado os defensores da teoria do “Design Inteligente”, que afirma que Deus seria o “arquiteto do mundo”, a “inteligência que ordena o universo”. Em última instância, mesmo para as espécies evoluírem, como constatara Darwin, seria necessário um ser transcendente que comandasse tal processo.

Segundo alguns geólogos, um argumento matemático poderia, com certa facilidade, desconstruir as teses criacionistas: segundo o livro do Gênesis, Adão fora criado no ano de 3.728 a.C. Em outras palavras: em 2016 estamos há 5.677 anos da criação do primeiro ser humano, que, aliás, viveu 930 anos. Se, como consta na Bíblia, Deus criara o mundo no mesmo período que criara o homem, quem teria criado os animais anteriores ao homem? Até o momento, pelos fósseis encontrados recentemente, o dinossauro mais antigo de que se tem notícia viveu 230 milhões de anos atrás. Avançando no raciocínio, para a “genealogia” do homem, temos “Lucy”, o fóssil mais antigo de hominídeo, encontrado na Etiópia em 1974. Tudo indica que este ser vivera há aproximadamente 3 milhões de anos. Tudo bem, trata-se de um australopithecus afarensis, nosso parente distante. Para satisfazer os mais afoitos, damos um salto temporal e constatamos que o fóssil mais antigo do Homo Sapiens, espécie que originou o homem moderno, tem mais de 60 mil anos. Sobre isso, uma anedota que, por incrível que pareça, é verídica: como alguns teístas explicavam os fósseis de dinossauros antes de Darwin? Resposta: os dinossauros existiram e não existem mais simplesmente porque não foram colocados na arca por Noé.

Assim como o politeísmo cumpriu uma importante função social na Grécia antiga, o cristianismo fez o mesmo na Idade Média e na Modernidade do Ocidente. Todavia, por que ainda se sustenta sob o ponto de vista teológico?  

Dostoievski, em 1880, fez um dos irmãos Karamázov dizer: “se Deus não existir, tudo será permitido”. Essa frase diz muito sobre parte da necessidade humana de criar uma entidade transcendente: a moral. Sob esse ponto de vista, é preciso que haja um Ser supraterreno para garantir o bom comportamento dos homens e para punir os que saem da linha. Se assim não for, como disse Mitia Karamázov, o mundo seria inóspito. A outra metade dessa necessidade humana é de caráter existencial. Pensadores como Feuerbach, Nietzsche, Freud e Sartre (cada qual a seu modo), especularam que grande parte dos homens precisa de um ser superpoderoso para suprir suas carências existenciais. A maioria dos homens não dá conta da transitoriedade da vida. A existência finita, caótica e sem sentido prévio é demasiadamente massacrante para aqueles que não têm um Guia Celeste ou a esperança de vida após a morte. Eis que nascem os deuses.

Para concluir, ressalto que tal tema suscita inúmeras interpretações. E o intuito desse texto é justamente esse: o ponto de partida para um debate sobre a religiosidade.