Postado por Matheus Arcaro em 31/out/2018 - Sem Comentários
Certo dia uma aluna me disse que passava por um momento difícil e perguntou se eu conhecia algum filósofo que tivesse utilizado seu sofrimento como material filosófico. Na hora fiquei comovido, baqueado e, feito uma flecha, veio-me Friedrich Nietzsche à mente. Respondi, citei algumas passagens, porém, analisando mais tarde com cautela, a resposta não me pareceu satisfatória. Respondi, então, em forma de texto público porque, afinal, é provável que seja útil a mais gente.
Nietzsche, quando jovem, foi admirador da filosofia de Arthur Schopenhauer. Para Schopenhauer, a vida não tem sentido porque o homem nada mais é do que uma manifestação da Vontade Una, uma força metafísica cega e irracional. Todo prazer é ponto de partida de uma nova aspiração. Em uma sentença célebre, fica claro o niilismo de Schopenhauer: “a vida não passa de um pêndulo entre o sofrimento e o tédio”. Em suma, viver é sofrer.
Com a publicação de “Humano, demasiado humano” (1878), Nietzsche rompe com seu “mestre”; o pessimismo schopenhauriano definitivamente não era uma boa contribuição para o ser humano. A vontade, para Nietzsche, não deve ser negada, mas afirmada, como criadora, uma vontade plural, múltipla, que ele chamou de “vontade de poder”. Eis que a noção de “afirmação da vida” começa a tomar força em sua obra.
Escreveu Nietzsche no Crepúsculo dos ídolos: “O que não provoca minha morte faz com que eu fique mais forte”. Embora tal frase tenha sido vulgarizada nos livros de autoajuda, ela tem um substrato potentíssimo.
A vida de Nietzsche não foi fácil. Sofreu com terríveis enxaquecas, dores nos olhos e no estômago, insônia e náusea. O suicídio passou várias vezes por sua mente. “Pois o terrível e quase incessante martírio de minha vida me dá sede de morrer”, escreveu em 1879. Nesse período, afirmou a amigos que passava três quartos de seu tempo com dores e o restante estafado. Todavia, os períodos de sofrimento mais profundo foram os de maior produção filosófica. A dor passou a ser uma preciosa ferramenta de transgressão e afirmação de si. Dois conceitos, entrelaçados entre si, são essenciais para percebermos o que a frase de Nietzsche realmente significa.
O primeiro, Eterno Retorno, é um norteador afirmativo da vida, da aceitação de todos os acontecimentos independente de seus resultados. Escreve Nietzsche na Gaia Ciência:
“E se um dia um demônio te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda inúmeras vezes; e não haverá nada de novo, cada dor, cada prazer, cada pensamento e suspiro e tudo o que há de pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência. O que farias? Rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou responderias: ‘Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!’ Se este pensamento adquirisse poder sobre ti, ele te transformaria e talvez te torturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: ‘Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?’ pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir? Ou então, como terias de ficar bem contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa eterna confirmação e chancela?”
Em termos sucintos: você teria coragem de repetir sua vida exatamente como ela foi até agora? De aceitar que se repetisse por toda eternidade cada alegria e cada tristeza, cada prazer e cada dor? O eterno retorno é uma navalha existencial. É a hipótese vital que nos incita à afirmação integral da vida.
O segundo, espécie de desdobramento do Eterno Retorno, é o “amor-fati”. De acordo com Nietzsche, é preciso amar o que aconteceu, ou seja, encontrar beleza no necessário, no inexorável, tanto para momentos de felicidade como para momentos de desespero. Transformar o “foi assim” em “eu quis assim” dá um sentido próprio ao que aconteceu. Apropriar-se do acontecido nos torna capaz de seguir adiante. Podemos ler na Gaia Ciência:
“Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas. Amor-fati: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores, Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!”
Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche escreveu que “o homem é algo que deve ser superado”. Longe de interpretações rasteiras, o pensador alemão está nos convidando à superação de nós mesmos. E isso não está numa tábua de leis ou valores, num livro ou num conselho. “O fraco quer que a mudança venha de fora porque não consegue operá-la de dentro”, consta na mesma obra. O forte consegue a verdadeira mudança, que brota de si. Para você, aluna querida, e para quem mais estiver pensando em desistir por conta das dificuldades ou sofrimentos, ouse ser forte, ouse dizer sim. “A vida só se justifica como fenômeno estético”, afirmou Nietzsche em O nascimento da tragédia. Se concordarmos com o bigodudo nascido em Röcken, a vida é uma obra de arte e você é artista de si mesmo.
Postado por Matheus Arcaro em 22/ago/2018 - Sem Comentários
Para Immanuel Kant, sim. Tanto é que ele dedicou uma obra inteira para as questões do gosto, a “Crítica da Faculdade de Julgar”, publicada em 1790. Para o filósofo supracitado é possível discutir o gosto porque uma discussão é diferente de uma disputa. Filosoficamente, uma disputa é uma batalha de argumentos que exigem demonstrações, a fim de que uma ideia prevaleça. Uma discussão é um processo de lapidação das opiniões, cuja finalidade é chegar a um acordo entre as partes. Assim, não se disputa sobre o belo, porém pode-se discuti-lo. Kant afirma ainda que a experiência estética é compartilhável e que a beleza é uma ideia universal da razão. Seu conteúdo e sua forma podem variar segundo circunstâncias históricas e segundo a subjetividade dos artistas, mas o sentimento de belo, fundamento do juízo de gosto, é universal.
Partindo das proposições kantianas, ou seja, se o sentimento de beleza é universal e passível de partilha, por que, atualmente, vivemos uma carência de esteticidade? Hoje em dia, conforme ilustra Marilena Chauí, se perguntássemos a uma pessoa comum o que é um artista, provavelmente ela elencaria nomes de atores de televisão ou cantores populares. Escritores, pintores e escultores com quase toda certeza não seriam citados. Para este indivíduo, diferentemente da concepção Romântica, o artista não é o gênio criador, inspirado divinamente; é alguém que realiza performances. Por que esta percepção? Na contemporaneidade, a sociedade do espetáculo está intrinsecamente ligada à Indústria Cultural. Com a necessidade de fazer girar o capital, a indústria da cultura, de maneiras diversas, distorce o conceito de beleza porque sua finalidade é atingir um número grande de pessoas. “Onde as massas têm o poder de decidir, a autenticidade se torna supérflua, nociva e prejudicial”, sentenciou Nietzsche. Sobre este ponto, a literatura é ilustrativa: por que livros, digamos, “palatáveis” (autoajuda, por exemplo) vendem muito mais do que livros complexos e bem escritos? Uma das respostas possíveis: a literatura genuína faz o leitor tropeçar. E não é todo mundo que está preparado para cair. Os “best sellers” são “best sellers” porque dizem o que o leitor espera. O menos preparado chama isso de “identificação” com a obra. “Puxa vida, este autor diz exatamente o que eu penso.” Não consegue perceber que o prazer da leitura está justamente em “fechar o círculo”. Este tipo de leitor jamais compreenderia Jean Paul Sartre, quando este afirmou que escrever é distanciar-se da linguagem instrumento e entrar na atitude poética, tratando as palavras como entes reais e não como símbolos estabelecidos. Seguindo o raciocínio sartreano, é lícito distinguir a linguagem: a cotidiana como “instituída” e a do escritor como “instituinte” (criadora, inventora de significações).
Não é exagero afirmar que o homem médio contemporâneo perdeu a capacidade contemplativa; mais que isso, perdeu a capacidade de distinção estética, a ponto de colocar no mesmo balaio Ivete Sangalo e Chico Buarque. As músicas (e as artes em geral) produzidas para a massa são estruturalmente muito parecidas. Isso é facilmente explicável: a Indústria Cultural desenvolve recursos técnicos para multiplicar aquilo que é considerado o traço mais marcante da obra de arte: ser única (é o que Walter Benjamim define como “aura”). Diz ele em seu clássico livro “A obra de arte na era da reprodutibilidade”: “Fazerem as coisas ‘ficarem mais próximas’ é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como superar o caráter único de todos os fatos através de sua reprodutibilidade”. O anseio da modernidade em quebrar a transcendência dos objetos artísticos que provinha de sua unicidade fez esmaecer a aura.
Novamente trago Nietzsche: “Quanto mais superior é uma coisa em seu gênero, tanto mais raramente ela é bem sucedida”. Sob este viés, cai por terra qualquer discurso de “democratização da arte”. Mas, em contrapartida, tomando as palavras de Kant que atribuiu o status de partilhável à beleza, não seria válido dizer que a arte pode ser para todos, ainda mais se levarmos em conta o poder de disseminação da internet? Não é bem assim. Para penetrar nesse reino, o homem precisa de cultivo. Aquela pessoa cujo espírito é educado pelas artes é capaz de formular o juízo de gosto adequado; é capaz de compreender que a arte está muito além da utilidade e do prazer. Sim, é preciso que o indivíduo tenha instrumentos de julgamento; é preciso dar a ele possibilidade de escolha. Em termos simples: para que alguém afirme categoricamente que “pagode” é o seu o gênero musical preferido, faz-se necessário o conhecimento de outros tipos de música, como a erudita. Afinal, a comparação é o princípio mais elementar de conhecimento, como nos mostra Platão em sua célebre alegoria da caverna: se se conhece somente as sombras, acredita-se que elas sejam toda a realidade existente.
Talvez nosso erro esteja em querer julgar com as categorias da arte algo que, de antemão, não se propõe a ser arte, somente entretenimento. Michel Teló não quer produzir um sentimento de arrebatamento em nosso ser (a mais alta função da arte, segundo Kant). Com a Indústria da Cultura, o entretenimento invadiu o terreno da arte e a distanciou muito do cidadão comum. Isso fez com que o “relativismo estético” tomasse proporções assustadoras em nossa cultura. Todavia, trilhar o caminho oposto, ou seja, estancar os limites da arte pode ser extremamente perigoso. As consequências podem variar desde o engessamento da expressão (uma espécie de totalitarismo estético) até os mais brutais massacres como o protagonizado por Adolf Hitler. Afirmava ele: “Muito tempo atrás o homem era lindo, mas a miscigenação e a degeneração poluíram a Terra.” Com a fixação de “embelezar o mundo”, Hitler arquitetou seu plano de “higienização da humanidade”, que culminou no holocausto.
Atenuados os dois extremos (dogmatismo e relativismo), em quais veredas, então, podemos vislumbrar a arte? Obviamente, as respostas são inúmeras. Talvez a definição de artista de Merleau-Ponty nos ajude. Dizia ele que o artista é aquele que fixa e torna acessível aos demais humanos o espetáculo de que participam sem perceber. Ou a de Fernando Pessoa, que se faz ouvir pela boca de Alberto Caeiro: “o artista procura o pasmo essencial, que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras”. A arte pode e deve ser a manifestação da essência da realidade que está amortecida em nossa existência diária. Contudo, isso não significa atribuir à arte um papel moralizante. A arte não deve melhorar ninguém, não deve sequer ser agradável. Theodor Adorno toca nesse ponto ao escrever em sua “Teoria Estética”: “À aceitação conformista da concepção corrente da obra de arte como bem cultural agradável, corresponde um hedonismo estético que expulsa da arte toda a negatividade para os conflitos pulsionais da sua gênese…” A arte deve, sim, mostrar a condição humana perante a vida; mostrar o humano em todas as suas possibilidades, inclusive na esfera mais trágica e horrorosa. Parafraseio novamente Nietzsche: “Só a arte pode transformar a ideia de repugnância sobre os aspectos horríveis e absurdos da existência em representações com as quais se torna possível viver.” Para Nietzsche, a arte é um “estado de vigor animal”, a mais visceral afirmação da vida. Sim, amigos! O que ele nos propõe é uma mudança de perspectiva sobre a própria vida: uma ontologia estética. A vida como arte, movimento e pulsão; o homem, concomitantemente, como artista e obra de arte. E assim toma corpo o seu brado: “a vida só se justifica como fenômeno estético”.
REFERÊNCIAS
PLATÃO. A República
KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade de Julgar
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia
_________________. Assim falou Zaratustra
ADORNO, Theodor. Teoria Estética
BENJAMIM, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
SARTRE, Jean Paul. O que é a literatura?
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia
Postado por Matheus Arcaro em 11/ago/2018 - Sem Comentários
Talvez Ludwig Feuerbach seja mais conhecido pela influência que exercera sobre Karl Marx do que propriamente por sua obra. Mas o pensamento do filósofo alemão é deveras denso e profundo para ser reduzido a apêndice de Marx.
Antes de falarmos propriamente de Feuerbach, cabe uma breve contextualização histórico-filosófica. Com a filosofia de Friedrich Hegel, no início do século XIX, a especulação metafísica chegou ao ápice. Depois disso, o idealismo alemão começou a sucumbir sob as duras críticas dos filósofos que o sucederam, entre os quais Feuerbach e Marx, por um lado e Schopenhauer e Nietzsche, por outro. Enquanto os primeiros transformaram o idealismo absoluto hegeliano, aos poucos, em materialismo histórico, Schopenhauer e Nietzsche, por sua vez, se colocaram em oposição radical ao reinado da razão de Hegel, inaugurando a filosofia da Vontade.
Partamos, então, para Ludwig Feuerbach, que nasceu em 1804 no país que seria a Alemanha. Nos primeiros anos de estudo foi profundamente marcado pelo pensamento hegeliano (abandonou os estudos de Teologia para tornar-se aluno de Hegel, durante dois anos, em Berlim). Passado esse tempo, tornou-se um crítico severo da filosofia do mestre e, em 1828, começou a estudar ciências naturais. Dois anos depois publicou anonimamente seu primeiro livro, “Pensamentos sobre Morte e Imortalidade”, obra na qual ataca a ideia da imortalidade, sustentando que, após a morte, as qualidades humanas são absorvidas pela natureza. Em 1839 publicou “Sobre Filosofia e Cristianismo” que discutia a essência antropológica de toda religião, uma das obras que mais influenciou Karl Marx. Ainda publicou vários livros, dentre os quais podemos destacar “Crítica à filosofia hegeliana”, de 1839, “Princípios da filosofia do futuro”, de 1844 e “Espiritualismo e materialismo”, de 1866. Morreu em 1872.
Como adiantamos brevemente, Feuerbach tece veementes críticas à filosofia de Hegel. De maneira didática, podemos reduzi-las a dois pontos principais. O primeiro refere-se à valorização hegeliana do abstrato em detrimento do concreto e real. De acordo com Feuerbach, a filosofia idealista de Hegel é ausente de determinações concretas, pois gira em torno do conceito e da lógica. O empírico, enquanto presente, é concebido por Hegel como aquilo que deve ser suprimido em prol do abstrato. O segundo ponto diz respeito ao método de investigação. Feuerbach acusa Hegel de pressupor a Ideia Absoluta, cujas fases intermediárias não passam de simulações forçadas, mas não fundamenta tal noção.
Feuerbach não nega integralmente o idealismo hegeliano. Contudo atribui a ele uma interpretação materialista, conforme a qual, as leis da realidade são também leis do pensamento. Em outros termos: Feuerbach substitui o Espírito de Hegel pelo gênero humano.
Desde as obras precoces, Feuerbach submente a religião a exames severos. No livro “Pensamento sobre a morte e sobre a imortalidade”, de 1830, afirma que a noção da imortalidade individual só apareceu com força na modernidade. Nem no mundo greco-romano, nem na época medieval, o problema da imortalidade configurava uma questão fundamental da existência. O homem da época greco-romana não se reconhecia como consciência individual, considerando-se como parte do todo, da polis. O homem medieval, por sua vez, não se via envolvido com problema da imortalidade, apesar de o tema ser artigo da fé. Vivia a sob a responsabilidade da Igreja, já que ainda não tinha desenvolvida a consciência da sua individualidade. Foi depois do pensamento de René Descartes que tudo passou a girar em torno do indivíduo; até Deus foi transformado em pessoa: um ser que se difere do homem por uma questão de grau. Eis um dos pontos centrais da crítica feuerbachiana à religião. Em “A essência do cristianismo”, ele afirma que “em Deus existem as mesmas determinações que existem no homem, só que em Deus elas são infinitas e finitas no homem”. Em outro trecho, o pensador evidencia o mesmo problema, tomando como apoio a noção de consciência: “A consciência que o homem tem de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo.”
Feuerbach assevera que a religião cristã suscita e reproduz o egoísmo. E para sustentar tal tese, ele lança mão, dentre outros argumentos, da doutrina criacionista. Segundo o pensador, o criacionismo não poderia ter nascido entre os gregos, mas somente onde os homens concebem a natureza como “nada”, como produto e objeto de uma vontade subjetiva. Monoteísmo e criacionismo são fermentadores da subjetividade livre. E a crença em um Deus pessoal e transcendente implica necessariamente na exaltação da personalidade fechada, indiferente às determinações substanciais do mundo e ao laço com o outro. Em suma, esse Deus corresponde à ideia da personalidade humana como subjetividade separada do mundo e abstraída de sua constitutiva unidade com o outro.
Embora a obra supracitada seja intitulada “A essência do cristianismo”, Feuerbach disfere sua crítica não somente ao cristianismo, mas a toda espécie de religião. Diferentemente de Hegel, que considerou a religião como grau inferior da Filosofia, Feuerbach concebe-a em oposição à filosofia. Desse ponto de vista, todos os mistérios e milagres que a religião enfatiza nada mais são do que verdades naturais às quais a consciência religiosa confere imagens. Tais imagens são produto de uma consciência alienada da sua essência que projeta em um soberano transcendente a sua própria essência humana. Essa tese fundamental do livro é tratada por Feuerbach em dois aspectos: antropológico e teológico. O primeiro configurando a religião verdadeira e o segundo, a não-verdadeira.
Quanto ao aspecto antropológico, Feuerbach afirma que a religiosidade é um atributo essencial da natureza humana, que se define como consciência. Contudo, não como consciência de si, como indivíduo, mas como consciência do gênero humano. A esse propósito, a comentadora Sophia Rovighi esclarece: “Ter consciência de si como espécie significa ter consciência da própria essência universal, da própria humanidade.” Neste sentido, fica evidente que, para o pensador, o objeto da teologia, Deus, é uma essência objetivada do homem. A religião cristã é a relação do homem com a sua essência transformada em outra. Diferentemente do animal, “o homem é, ao mesmo tempo, Eu e Tu e pode se colocar no lugar do outro justamente porque não é apenas individualidade, mas também espécie que, no fim das contas é a sua essência”. O homem religioso, por ser alienado da sua essência, transfere-a para um ser transcendente, isto é, Deus. A consciência religiosa é uma consciência infantil que, ao crescer e amadurecer, naturalmente se transformará em filosofia. Uma prova dessa confusão entre Deus e a essência humana, ele descobre no tratamento antropológico de Deus por grande parte das religiões. Desse ponto de vista Deus é pessoa: pai, filho, santo, bom, justo, etc. Determinações essencialmente humanas são atribuídas ao soberano divino. A religião é, portanto, antropologia que esqueceu suas raízes.
O aspecto teológico revela-se para Feuerbach como distorção e manipulação da origem antropológica da religião. Partindo da doutrina da salvação, ela reduz tudo ao núcleo do indivíduo que, para se salvar e com medo da punição, adere a moral religiosa sem questionamento. Apesar de reconhecer na figura de Deus a soma de todas as perfeições, a consciência religiosa empobrece e inferioriza o homem: “Para enriquecer a Deus, o homem deve empobrecer-se; para que Deus seja tudo, o homem deve ser nada.” Essas reflexões sobre a Teologia seriam ampliadas mais tarde pelas “Lições sobre a essência da religião”, discursos proferidos em Heidelberg entre 1848 e 1849 e publicados em 1851em que a sua tese principal é que o sentimento de dependência do homem está na base de toda religião.
Diante desse panorama, fica a pergunta: qual é a saída, então? O processo de desmistificação da religião coloca o homem numa situação, digamos, curiosa. Por um lado, ele já não toma a sério os dogmas religiosos e abandona, aos poucos, a sua devoção. Por outro, deixado a si mesmo, ele precisa de uma esperança que o torne confiante no seu futuro. Eis que emerge a importância da Filosofia. Feuerbach acredita que a filosofia deva assumir o protagonismo e conduzir o homem à sua essência, tese que ele enfatiza na obra “Princípios de uma filosofia do futuro”.
A principal missão desta nova filosofia é responder à pergunta o que é o homem? Diferentemente das filosofias anteriores (principalmente o Idealismo) que vieram atender a uma necessidade filosófica, a filosofia proposta por Feuerbach deve responder uma necessidade humana. E, uma vez superada a religiosidade, o homem deve abandonar a Bíblia e filiar-se à razão.
Mas isso, obviamente, não significa submeter tudo à razão como propusera Hegel. Feuerbach aproxima teologia e filosofia especulativa, já que, partindo dos postulados da teologia comum, que considera Deus como pessoal e transcendente, a filosofia especulativa põe-no na Terra, tornando-o presente e determinado. Desse modo, ele submete à crítica a tentativa da filosofia especulativa de identificação de Deus com o pensamento, uma vez que este não é criador de realidades, mas formador de conceitos abstratos que por si mesmo nada podem realizar. Afirma ele: “O real em sua realidade, ou o real enquanto real, é o real enquanto objeto dos sentidos, é aquilo que é sensível (…). Somente um ser sensível é um ser verdadeiro, um ser real. Somente os sentidos e não o pensamento por si só, nos dão o objeto em seu verdadeiro sentido.”
As formas da existência material e natural são o espaço e o tempo. Essas formas são concebidas como leis tanto do ser como do pensamento. Sem essas leis toda sensação, vontade e pensamento não passariam de ficções vazias. Portanto, sem matéria não existiria conteúdo a ser pensado. Disso emerge um conceito essencial na filosofia de Feuerbach: o amor.
Para Feuerbach, amor é materialismo que, por sua vez, envolve uma plena essencialidade do mundo sensível. E só o amor é capaz de resgatar a “essência humana do homem” deformada pela fantasia da religião (principalmente por atribuir esse sentimento a um Deus pessoal) e pela especulação filosófica. Essa “essência genérica” racional, amorosa e comunitária, constituída por nossas excelências e potências voltadas ao outro é fundamentada nos sentidos e não no pensamento. Novamente as palavras do pensador corroboram tal noção: A nova filosofia fundamenta-se na verdade do amor, na verdade da sensação. Ela representa o coração elevado ao plano do intelecto. O coração não quer objetos e entes abstratos, metafísicos ou teológicos, quer objetos e entes reais e sensíveis.”
As relações humanas, que outrora eram presididas por Deus, devem ser regradas por esse homem do amor, pela essência humana presente em todo homem. Para concluir, uma frase que, apesar de retórica, sintetiza esse sentimento humano: “Onde não há amor, não há verdade; somente tem valor quem ama. Nada ser e a ninguém amar é a mesma coisa. ”
Postado por Matheus Arcaro em 03/ago/2018 - Sem Comentários
Talvez a pergunta que intitula esse texto seja uma das mais formuladas a um artista. E ele, se não quiser ser mal educado, faz uma breve contextualização do conceito para mostrar que a inspiração, em si, nos moldes que a tradição cunhou, não existe.
A palavra inspiração é de origem latina e, grosso modo, significa “soprar” ou “insuflar”. Grande parte dos dicionários contemporâneos define inspiração como uma sugestão de origem transcendente que excita o artista a produzir. Trata-se, portanto, de um conceito metafísico que coloca o artista como uma espécie de “médium” que, para criar, recebe um “sopro divino”.
Segundo a maioria das religiões, os livros sagrados foram “inspirados”. Basta pensarmos nos evangelistas cristãos ou em Maomé, que escreveu o Corão sendo praticamente analfabeto. Especificamente no âmbito literário, desde as epopeias homéricas, o poeta é um inspirado pelas Musas. Era a relação entre o humano e o divino que possibilitava o canto capaz de expressar os eventos passados, presentes e futuros, cujo conhecimento era interditado aos homens comuns. Platão, em seu diálogo “Íon” é enfático a esse respeito: “Não é por efeito da arte, mas pela ação de um deus que neles reside e os possui, que todos os bons poetas épicos compõem os belos poemas, coisa que também se pode dizer dos bons autores de cantos líricos.”
Em tempos mais recentes, o período áureo da ideia de inspiração ocorreu no Romantismo. Foi na Escola Romântica que se intensificou o culto ao Eu e, assim, emergiu a figura do gênio. O filósofo Immanuel Kant definiu gênio como “o talento que fornece regra à arte”. Ou seja: é através do gênio que a natureza molda suas diretrizes. Foi com Kant também que ganhou peso a ideia de originalidade (até o início da modernidade, possuía mais valor o que era copiado dos grandes mestres). E quem era o gênio capaz de originalidade? Aquele que tinha a possiblidade de ser inspirado. Assim, percebemos a arte ultrapassando o artista, que era uma espécie de títere, conduzido pela inspiração ao reino da originalidade.
Todavia, no início do século XX, devido a inúmeros fatores culturais, intelectuais e estéticos (incabíveis nessa reflexão) a ideia de inspiração começou a se esvanecer. O que se chamava de inspiração, passou a ser visto como a soma de algumas propriedades.
A primeira delas é o exercício. Certa vez, o músico Soraste afirmou: “Durante 27 anos pratiquei 14 horas por dia e, agora que cheguei nesse estágio, chamam-me de gênio”. Com isso, óbvio, não sentenciamos que alguém que treine por um longo período, necessariamente, será gênio. É aí que entra o segundo (e talvez mais importante) atributo: o talento ou a tendência natural (que nada tem a ver com algo divino). É espantoso pensar que Wolfgang Amadeus Mozart com 6 anos tocava suas primeiras sonatas. Para explicar casos como os de Mozart a ciência lança mão de algumas hipóteses. Uma delas sustenta que as células cerebrais no superdotado têm um número maior de conexões entre si do que numa pessoa “comum”. Outro ramo de pesquisa defende que a genialidade não está vinculada à bagagem genética e sim aos estímulos que a criança recebe nos 3 primeiros anos de vida. De qualquer modo, independente da explicação técnica para isso, fato é que a aptidão é fundamental para a criação.
O terceiro atributo chamamos aqui de bagagem, o que não se resume somente a experiências intelectuais, mas também à esfera cultural e emocional. São todas as vivências calcadas em erros e acertos e, claro, em estudos, pesquisas e aprendizados. Se quero ser escritor (e tenho aptidão para isso) é provável que minha criação melhore muito se eu conhecer as grandes obras da literatura universal (embora a Clarice Lispector não concordasse muito com isso). Talvez aqui caiba uma observação sobre o aparelho psíquico. Depois de Freud, não é lícito relegar a participação do inconsciente na criação artística. Mas se ele não for visto com cautela, corre-se o risco de o interpretarmos como uma “inspiração interior”, tão mística quanto a inspiração romântica. De fato, o inconsciente é capaz de fazer conexões inesperadas. Porém, tais conexões nada têm a ver com algo transcendente. São, ao contrário, alicerçadas em desejos, prazeres e frustrações. Em termos simples: na própria vivência do indivíduo.
Por fim, é preciso ter em conta a disposição (física e mental); o estado de ânimo do momento. Assim como há dias em que um vendedor está mais animado para atender seus clientes (e, por conseguinte, tem mais chances de fazer boas vendas), o artista está mais disposto para escrever, pintar ou compor. Trazendo a questão para um terreno que dizem ser de conhecimento amplo dos brasileiros: certa vez meu pai me disse que, apesar da baixa recorrência, já viu atuações pífias do Pelé. E isso, segundo o que discutimos, não tem relação com o descuido da divindade que, no momento dos jogos, o habitava. Pelé simplesmente não estava em um “dia bom”.
Evidentemente as características acima mencionadas podem aparecer em maior ou menor grau ou serem rearranjadas de inúmeras formas.
Como adendo, mas de modo não menos importante, é digno de destaque o papel do acaso nas criações artísticas. Se pensarmos em Jackson Pollock, essa ideia toma contornos mais nítidos: foi por descuido (um fio de tinta que escorreu no tecido esticado no chão) que surgiu um dos maiores artistas expressionistas do século XX.
Algumas objeções podem surgir à linha argumentativa proposta, alegando que se trata de um rigor terminológico desnecessário. Contudo, nunca é demais ressaltar que a linguagem ordinária está permeada de metafísica. Por isso, com perspicácia, Nietzsche escrevera que “não nos livraremos de Deus enquanto acreditarmos na gramática.” Destarte, eis o corolário: a inspiração expirou.
Postado por Matheus Arcaro em 03/ago/2018 - Sem Comentários
A educação é o alicerce do homem! Tal frase, proferida em um palanque eleitoral, certamente teria grandes efeitos retóricos. Todavia, não podemos fincar raízes no solo do senso comum. A exclamação, analisada com mais seriedade, leva a algumas indagações anteriores: primeiramente, o que entendemos por educação? Supondo haver consenso sobre isto, é possível atingir resultados minimante satisfatórios sob o ponto de vista cognitivo, estético, ético, crítico e sensitivo? Se sim, a escola é o local mais propício? É possível afirmar que nossas escolas estejam cultivando as potencialidades dos nossos jovens?
Uma das maneiras de nos aproximarmos de possíveis respostas é analisando as teorias dos currículos. A questão central de uma teoria do currículo é determinar qual conteúdo deve ser ensinado. Aí já cabe uma grande reflexão, afinal, o material de ensino é sempre parte de uma seleção. E selecionar é uma operação de poder: ensinando isso e não aquilo, muito provavelmente teremos um tipo X e não Y de ser humano.
Das teorias tradicionais de currículo, podemos destacar a de Franklin Bobbit. Sua proposta surge em 1918, no ápice da industrialização americana. Para ele, a escola deveria funcionar como uma fábrica, pois ambas atuam como “um processo de moldagem”. O sistema educacional deveria ser capaz de especificar precisamente quais resultados pretende obter, quais os métodos para atingir estes resultados e como mensurá-los. Os objetivos deste sistema são baseados nas habilidades necessárias para exercer com eficiência as ocupações profissionais da vida adulta. Para entendermos este ideal, precisamos recuar; precisamos remontar a origem do modelo vigente de pensamento: racional fragmentador e dominador.
Várias correntes formam a base do pensamento ocidental moderno, dentre elas a Revolução Científica, o Iluminismo e a Revolução Industrial. Em meados do século XVI, a visão de um mundo orgânico, vivo e espiritual, presente na medievalidade, começou a ser substituída pela noção de mundo-máquina. O homem foi colocado como senhor do universo e, pela ciência, poderia e deveria dominar a natureza. Francis Bacon, com seu método de investigação científica que procurava descrever a natureza matematicamente e Galileu Galilei, pai do experimentalismo científico, que substituiu a argumentação lógica da dialética formal pela observação dos fatos, são grandes expoentes da formação do pensamento moderno. Contudo, duas figuras merecem mais atenção: René Descartes e Isaac Newton. Descartes, patrono do racionalismo, com a sua metafísica, cindiu o homem em corpo e mente e instaurou a superioridade dessa sobre aquele; estava inseminado o culto ao intelecto em detrimento à sensibilidade. Newton, por sua vez, concebeu o universo como um sistema mecânico que funciona de acordo com leis físicas e matemáticas imutáveis. Esse determinismo universal deu origem à ideia de que, para compreender o real, seria preciso dominar e transformar o mundo pela técnica. Técnica que serviu de base para a Revolução Industrial, aumentando desmesuradamente o poder do homem sobre a natureza e automatizando o trabalho humano.
Pois bem. No sistema educacional, este modelo ainda é reproduzido. Continua-se gerando padrões de comportamento preestabelecidos, com base num paradigma que não suscita questionamento e reflexão. Pelo contrário, prega-se arbitrariamente o alcance da verdade absoluta. Continua-se a limitar os jovens ao espaço reduzido de suas carteiras, silenciando suas falas, reduzindo sua criatividade e sociabilidade. Em vez de processos interativos para a construção do conhecimento, exige-se memorização, repetição e cópia. O conteúdo e o produto são mais importantes que o processo de construção do conhecimento. Geralmente, a espontaneidade e o ímpeto criativo são reprimidos pelo professor, o detentor do saber, o transmissor de informação. Sim, afinal o aluno é uma tábula rasa.
As teorias críticas de currículos propuseram-se a efetuar uma inversão nos fundamentos das teorias tradicionais. Um grande expoente desta linha é o Louis Althusser, que critica o sistema educacional traçando um paralelo entre educação e ideologia. Ideologia, para ele, são as crenças que nos levam a aceitar as estruturas sociais existentes como boas e desejáveis. A disseminação dessa ideologia é feita pelos aparelhos ideológicos do Estado: polícia, religião, família, mídia, e, principalmente, a escola, que atinge praticamente toda a população por um período longo de tempo.
Para os autores Bowles e Gintis, a escola é o espelho das relações sociais do local de trabalho capitalista. Formata o aluno pelo próprio modelo de funcionamento: obediência às ordens, pontualidade, assiduidade etc. Já para Bordieu e Passeron, a cultura da classe dominante é tomada como molde de ensino. E, para que ela se mantenha como “a cultura” faz-se necessário que pareça não arbitrária. Eis que ocorre uma dupla violência: a imposição da cultura de um lado, e a ocultação da imposição, de outro. Abaixo o trecho de livro didático que evidencia isso:
“O operário mostra suas mãos cheias de calos: durante toda a vida tocaram a terra, os fogos, os metais. Estão cheias de riquezas, estão negras, cansadas e pesadas; Diz o senhor: Que beleza! Assim são as mãos dos santos.”
É sutil a maneira como os valores são impostos. Entretanto, analisando o excerto, podemos extrair dentre outras coisas: a hierarquia senhor-escravo, o elogio às consequências do trabalho para a manutenção dessa hierarquia, a comparação das mãos do trabalhador a um ícone da igreja católica etc.
De fato, as teorias críticas de currículo colocaram o problema. Porém, faz-se necessário avançar. Não se pode mais enxergar o homem com as lentes cartesianas e newtonianas. Um primeiro e grande passo para a mudança de paradigma foi dado pela assimilação da Teoria da Evolução de Darwin, uma nova lente para enxergar o universo que passou a ser descrito como um sistema em permanente mudança. Outros conceitos como do da termodinâmica e da entropia, que desconstroem a rigidez da física newtoniana, também são relevantes nesse cenário de transição. Mas foi com teoria quântica e, principalmente, com Albert Einstein (com a teoria da relatividade) que o paradigma da ciência moderna começou a desmoronar. Para ilustrar tal mudança: a própria existência da matéria não é mais dada como certa, apenas apresenta uma tendência probabilística de existir. Werner Heisenberg descobriu que o simples fato de se observar as partículas já interfere nelas. Observando um evento o observador “perturba” a situação. Assim, podemos dizer que não conhecemos do real senão o que nele introduzimos e que a distinção entre sujeito e objeto é muito mais complexa do que se imaginava.
A partir do século XX, o universo passou a não mais ser concebido como um relógio. Há irracionalidade; há caos. Em vez de algo estático, temos um sistema plenamente ativo. Essa leitura introduz uma criatividade constante na natureza e leva-nos a conceber o homem como ser físico, biológico, social, cultural, psíquico e espiritual, em sua multidimensionalidade. Para elucidar tal posição, o conceito de “complexidade”, de Edgar Morin, apresenta-se como fundamental. O pensamento simplista que “departamentaliza” as dimensões do homem ou as unifica por uma redução mutilante, deve ser substituído pela complexidade, que não intenta dar todas as informações sobre um fenômeno estudado, mas respeitar suas diversas dimensões.
Morin propõe o abandono da explicação linear de mundo por um tipo de explicação em movimento, na qual vamos da parte ao todo e do todo às partes. Uma teoria na qual os antagonismos podem ser estimuladores e reguladores. Ele enxerga a complexidade sob o viés da estratégia, em oposição ao programa. O programa é formatado, age conforme leis preestabelecidas. A estratégia, como na guerra, é a arte de usar as informações que aparecem na ação, de integrá-las e formular esquemas de ação. A complexidade não tem metodologia, mas método: pensa nos conceitos sem dá-los por concluídos, para quebrarmos as esferas fechadas, para reestabelecermos as articulações do que foi quebrado, para pensarmos na singularidade, na temporalidade e localidade, para juntarmos conceitos que lutam entre si. Ordem e desordem devem sem enxergados como termos dialógicos e inseparáveis.
A racionalidade que permeou os últimos trezentos anos segue basicamente cinco atributos: ordem, determinismo, objetividade, causalidade e controle. Contudo, analisado com calma, este pentágono apresenta-se com uma origem mítica, derivado da crença religiosa, na racionalidade de Deus que colocou em movimento um universo perfeito. A recusa da desordem, por mais racional que pareça, é metafísica (suposição de um mundo perfeito) e moral (rejeição das pulsões). Vale ressaltar que, de maneira alguma, Morin faz apologia à desordem. O que ele propõe é um diálogo, é pensar em conjunto a ordem e a desordem, permeadas pela organização. Com isso, podemos abrir caminho para a racionalidade, que conversa com o irracional e abandonar a racionalização que cristaliza o universo. Ele sentencia: “temos que dialogar com o mistério do mundo ao invés de tentar em vão desvendá-lo”.
Obviamente, a passagem destas noções epistemológicas para a educação não é tão simples. Há uma serie de obstáculos a serem vencidos, inclusive políticos. Todavia, à luz destes conceitos, uma nova postura de planejamento educacional pode ser ensejada. Esta nova visão de mundo pressupõe um novo estilo de diagnóstico e procedimentos metodológicos que permitam apreender o real em suas múltiplas dimensões. O pensamento sistêmico, o conceito de auto-organização, as estruturas dissipativas e o conhecimento compreendido como processo, podem trazer em seu bojo implicações significativas para a educação, enxergando-a como um sistema aberto, no qual existam diálogos, interações e transformações.
Sob esse enfoque, o currículo deve ser algo em constante negociação e renegociação entre alunos, professores e instâncias administrativas. É um currículo em ação. E o professor, em vez de arbitrário e rígido, passa a ser flexível, aceitar o indeterminado e as incertezas. É um ser “aprendente”, capaz de usar o imprevisto como ferramenta de ensino.
Postado por Matheus Arcaro em 03/ago/2018 - Sem Comentários
É bem verdade que o texto que se segue poderia sofrer objeções do gênero: quem não crê, não tem a capacidade de compreender a palavra Sagrada. E tal asserção, abalizar-se-ia tanto nas palavras de Agostinho: “Não procures entender para crer, mas crê para entender, porque, se não credes, não entendereis”, quanto nas de Anselmo: “Não busco compreender para crer, mas creio para compreender”. Contudo, minha proposta não é fazer uma crítica à fé em si, mas discutir os pressupostos histórico-filosóficos do cristianismo. Tampouco se trata de uma aula ou uma prescrição dogmática. Além do mais, para tais objetores, eu poderia usar as palavras de outro baluarte do cristianismo, Tomás de Aquino, para quem o fideísmo cego não é plausível: “A demonstração de Deus é do domínio da filosofia; a razão aqui impõe, em todo o seu rigor, a plenitude de suas exigências lógicas.”
Ressalvas feitas, entremos propriamente na reflexão. E para isso, nada mais pertinente do que analisarmos (mesmo que superficialmente) o livro que sustenta a doutrina cristã. É bem provável que a maioria dos crédulos, quando questionada sobre sua fé, utilize a Bíblia como instrumento de defesa. Por isso, cabe a nós colocar em xeque a maneira como a sagrada escritura foi tecida.
Comecemos com o Velho Testamento. Quem é versado em estudos mitológicos sabe que grande parte do Antigo Testamento foi “inspirada” nos mitos gregos e do antigo oriente (por exemplo, a história de Noé, “inspirada” no mito de Deucalião: Quando Zeus resolveu valer-se dos dilúvios para destruir a humanidade, que deveria ser punida pela maldade que demonstrava, Prometeu avisou a Deucalião e a sua esposa, Pirra. Disse-lhes que construíssem uma arca de madeira e colocassem nela um casal de cada espécie animal. Eles flutuaram nessa arca durante nove dias, até desembarcarem no alto do Monte Parnasso. Quando as águas desceram, os que estavam na arca eram as únicas criaturas vivas que restavam na Terra). Além disso, diferentemente do que exalta a canção católica “Deus dos pobres e do povo sofredor”, Javé está longe de ser um exemplo de bondade e comiseração, já que a primeira metade do “Livro Sagrado” está ensopada com o sangue dos desobedientes à Sua palavra.
Em relação ao Novo Testamento, é notável a influência da filosofia “socrático-platônica”. Grande parte dos filósofos da Patrística (em especial Agostinho) construíram os andaimes teóricos do cristianismo, conciliando a filosofia metafísica de Platão com os dogmas da religião emergente. É a partir dessa constatação que Nietzsche afirma que “o cristianismo é platonismo para as massas”. Entre alguns genealogistas, é certo que a divindade de Jesus foi construída por Paulo de Tarso (que, aliás, nunca encontrou pessoalmente com Jesus). É evidente que tal construção não é uma trama ardilosa de Paulo, mas sim o trabalho de um homem de uma mentalidade bem específica do Império Romano, com propósitos sociais. Outro ponto sobre o Novo Testamento: alguns historiadores afirmam que os quatro evangelhos canônicos se tornaram canônicos justamente porque, além do valor teológico, apresentam uma roupagem mais adequada que os outros não incorporados, chamados apócrifos: os que sugerem o envolvimento afetivo de Jesus com Maria Madalena, por exemplo, não entraram no Cânone.
Sob o ponto de vista histórico, o cristianismo chegou até a contemporaneidade (além do valor teológico, evidentemente) por fatores políticos. Afinal, nos primeiros séculos da nossa era, muitas religiões disputavam a hegemonia, mas Constantino (que em 313 concedeu liberdade de culto aos cristãos) e Teodósio (que em 380 estabeleceu o cristianismo como religião oficial do império romano) não tiveram escolha: para sustentarem o poder de Roma, optaram pela “doutrina da humildade e da salvação da alma”. Depois disso, com o poder instituído da Igreja Católica (vale lembrar que na Idade Média 1/3 das terras da Europa pertenciam à Igreja), ficou difícil contestar a religião vigente.
Sobre a criação do universo, mesmo com as teorias científicas sobre o Big-Bang, por exemplo, alguns crédulos sustentam que o mundo, conforme a tradição bíblica, fora gerado pelo Verbo divino em seis dias (é curioso que Deus, onipotente, precise de um dia para descansar da sua labuta criativa). Outros, por sua vez, tentam conciliar a teoria do Big-Bang com a criação divina do mundo, afirmando que mesmo que o universo tenha surgido de uma explosão cósmica, seria necessária uma Entidade anterior para “juntar as partículas”. O cristianismo não se propõe a dar explicações acerca da teoria criacionista. Por isso, é plausível a existência dos que creem que o homem fora feito do barro e a mulher, da costela do homem. Contudo, boa parte dos crédulos admite o caráter alegórico dessa passagem do “Gênesis”. Admite que Deus dissera ter feito o homem do barro porque, de outro modo, o povo daquela época não compreenderia. Se Ele dissesse que tomou algumas partículas de carbono, nitrogênio, água, ferro, cálcio, potássio e compôs o código genético de tal forma que cada ser vivo se reproduzisse conforme sua espécie, ninguém teria entendido. É verdade também que alguns cientistas cristãos, constatando que não poderiam “enfrentar” Darwin, criaram o conceito de “Design Inteligente”, uma tentativa de manter as teses criacionistas sem, contudo, negar a “evolução das espécies”. Na verdade, admitindo o caráter metafórico da criação divina do homem, seria preciso encontrar outra explicação para o seu surgimento no mundo. E é nisso que têm se empenhado os defensores da teoria do “Design Inteligente”, que afirma que Deus seria o “arquiteto do mundo”, a “inteligência que ordena o universo”. Em última instância, mesmo para as espécies evoluírem, como constatara Darwin, seria necessário um ser transcendente que comandasse tal processo.
Segundo alguns geólogos, um argumento matemático poderia, com certa facilidade, desconstruir as teses criacionistas: segundo o livro do Gênesis, Adão fora criado no ano de 3.728 a.C. Em outras palavras: em 2016 estamos há 5.677 anos da criação do primeiro ser humano, que, aliás, viveu 930 anos. Se, como consta na Bíblia, Deus criara o mundo no mesmo período que criara o homem, quem teria criado os animais anteriores ao homem? Até o momento, pelos fósseis encontrados recentemente, o dinossauro mais antigo de que se tem notícia viveu 230 milhões de anos atrás. Avançando no raciocínio, para a “genealogia” do homem, temos “Lucy”, o fóssil mais antigo de hominídeo, encontrado na Etiópia em 1974. Tudo indica que este ser vivera há aproximadamente 3 milhões de anos. Tudo bem, trata-se de um australopithecus afarensis, nosso parente distante. Para satisfazer os mais afoitos, damos um salto temporal e constatamos que o fóssil mais antigo do Homo Sapiens, espécie que originou o homem moderno, tem mais de 60 mil anos. Sobre isso, uma anedota que, por incrível que pareça, é verídica: como alguns teístas explicavam os fósseis de dinossauros antes de Darwin? Resposta: os dinossauros existiram e não existem mais simplesmente porque não foram colocados na arca por Noé.
Assim como o politeísmo cumpriu uma importante função social na Grécia antiga, o cristianismo fez o mesmo na Idade Média e na Modernidade do Ocidente. Todavia, por que ainda se sustenta sob o ponto de vista teológico?
Dostoievski, em 1880, fez um dos irmãos Karamázov dizer: “se Deus não existir, tudo será permitido”. Essa frase diz muito sobre parte da necessidade humana de criar uma entidade transcendente: a moral. Sob esse ponto de vista, é preciso que haja um Ser supraterreno para garantir o bom comportamento dos homens e para punir os que saem da linha. Se assim não for, como disse Mitia Karamázov, o mundo seria inóspito. A outra metade dessa necessidade humana é de caráter existencial. Pensadores como Feuerbach, Nietzsche, Freud e Sartre (cada qual a seu modo), especularam que grande parte dos homens precisa de um ser superpoderoso para suprir suas carências existenciais. A maioria dos homens não dá conta da transitoriedade da vida. A existência finita, caótica e sem sentido prévio é demasiadamente massacrante para aqueles que não têm um Guia Celeste ou a esperança de vida após a morte. Eis que nascem os deuses.
Para concluir, ressalto que tal tema suscita inúmeras interpretações. E o intuito desse texto é justamente esse: o ponto de partida para um debate sobre a religiosidade.