Postado por Matheus Arcaro em 03/ago/2018 - Sem Comentários
Inspirou como se erguesse a existência com os pulmões. Elas virão! A bofetadas, o tempo lhe ensinara que a vida não é uma equação pitagórica: uma delas pode ter passado mal; nesta época do ano, a gripe costuma atacar os que estão com o escudo em repouso. Ou, quem sabe, o carro pode ter enguiçado no caminho; estes carros modernos são mais frágeis que um coração empoeirado. Sentindo a menção do pensamento, o órgão debateu-se no calabouço torácico, mas logo foi domado pelo marca-passo e, resignando-se como um escravo recém-açoitado, voltou à sua função de tesoureiro da esperança.
De canto de olho, dissimulando para si o ato recorrente, o velho espiou o relógio frouxo no pulso, sem, contudo, apreender as horas. O visor estava com a cara para baixo, provavelmente intimidado por ser observado tão compulsivamente. Arrumou o instrumento no braço esquálido; os ponteiros, apesar de trêmulos, conseguiam marcar duas horas.
O almoço era servido pontualmente ao meio-dia. Porém, na semana anterior, combinara com a encarregada do turno que no dia por ele tão ansiado almoçaria uma hora mais cedo. Apesar de não olhar nos olhos dos pacientes (ou hóspedes como preferia dizer), ela consentira por se tratar de uma ocasião extraordinária. Assim, meio-dia e meia estava ele pronto, terno verde-musgo, sapato engraxado, gravata borboleta.
Os fios prateados do bigode, enfileirados feito militares condescendentes, refletiam os raios de sol que invadiam o alpendre. Sentiu-se consolado por compartilhar da luz que se deitava sobre o jardim à sua frente. No entanto, não estava à vontade no banco branco. Nem mesmo a fralda atenuava o desconforto causado pelas ripas de madeira. Era como se o confidente de tantas tardes não o reconhecesse naquele invólucro esverdeado e, para expelir o forasteiro, enrijecesse os nervos de mogno. Com um sinal, pediu à moça de jaleco que lhe trouxesse o andador. Prontamente ela obedeceu. Ao lado dele, ficou observando. O assombro, feito a sombra de uma nuvem no descampado, foi engolindo o enternecimento no rosto da jovem recém-contratada. O esforço ineficaz daquele homem em escombros trouxe um espelho à sua frente: viu-se pelada numa cadeira de rodas, com o tempo ancorado nos ombros. Respondendo ao impulso de conservação, pôs-se portão afora. No ocaso da vida, não nos pertencemos, minha filha, sussurrou o velho, mirando os cabelos esvoaçantes da ex-futura-enfermeira. Mesmo pensamento que o assaltara quando fora surpreendido pela neta com as calças sujas na sala de estar do seu apartamento, momentos antes do cobiçado pretendente dela apertar o interfone. Na manhã seguinte, Pedro Andrade chegava à Casa de Repouso, eufemismo rasteiro para seus ouvidos de poeta. Talvez Antecâmara do Cemitério ou Estoque de Cadáveres Teimosos fossem expressões mais apropriadas para a placa fixada no cume do arco de ferro, à entrada do jardim.
A encarregada, patrimônio do estabelecimento, ao constatar que o velho perderia o combate com a gravidade, correu ao seu encontro e o levantou pelos fiapos do bíceps. Ele agradeceu com a metade clara da face. A outra lamentava por sua mente não ter abraçado a degradação com tanta volúpia como fizera o corpo. Afinal, se do baú onde se armazenam as experiências fosse arrancado o fundo, a vida seria uma eterna novidade, e ele não faria mais que satisfazer suas necessidades imediatas. Mas a vontade pouco pode contra a natureza: ele continuava a se recordar dos anos em que a felicidade fora sua concubina.
Logo que entrara no salão seus olhos foram arrastados para a pele amendoada, os cabelos longos e negros e os gestos cristalinos. Ela não devia ter mais que dezoito anos. Soube mais tarde, quando seus lábios a experimentaram, que faria dezessete no mês seguinte. Daquela noite até a morte da esposa foram sessenta e quatro anos, uma filha e duas netas. Uma mulher que carregava no peito sublimes paradoxos, acrescentando constantemente à singeleza da menina do baile a bravura das fêmeas quando geram descendentes. Entretanto, ela não transmitiu à filha o predicado do cuidado. Talvez, por ser-lhe um atributo tão caro, não quis dividi-lo, contando que zelaria por seu homem até ele morrer. Para infortúnio do marido, sua perspectiva fora invertida pelo destino.
Fez o percurso de uma parede à outra. Repetiu. Novamente. Pelo vão do andador, olhava para o piso de um branco esquecido, olhos mirrados, dependentes da blindagem oferecida pelas lentes apoiadas no nariz corcunda. As axilas começavam a denunciar o esforço à camisa. Preciso me recompor, elas estão chegando! Sentou-se na poltrona encostada ao pilar, sustentáculo da cobertura do alpendre. Era numa parecida que a filha esparramava-se em seu colo no momento em que tentava mediação com a rima toante ou a métrica alexandrina. Depois da troca de afagos, o poema aparecia dançando em seus pensamentos, como se a inspiração estivesse grudada no sorriso daquela criança.
O coração novamente vazou, desta vez por um estímulo externo: o carro que apontava no portão era vermelho com detalhes pretos. O modelo, ele não sabia se correspondia ao que devia esperar. A filha contara-lhe superficialmente sobre a aquisição do veículo na última vez que conversaram, havia quatro meses. A ligação estava péssima, ela falava de um navio. É vermelho e negro, então, minha filha? Feito o livro do Stendhal… Esquece, deixa pra lá. Foi neste dia que ela prometera visitá-lo. Como um religioso inculto, o velho cria que desta vez a ocasião derrubaria a filha do dorso da promessa, onde ela se equilibrava amazonicamente por quase um ano. Assegurou que levaria as filhas, salgadinhos e bolo.
O carro crescia e o cheiro das netas acariciava mais intensamente suas narinas, parabéns, vovô, o hálito hialino da filha adoçava-lhe as lágrimas, papai, o senhor é o meu alicerce. Os quatro cantariam em volta do bolo, velas acesas, a encarregada tiraria algumas fotos, afinal ele não poderia confiar cegamente no assoalho do seu baú que, apesar de resistente, estava completando noventa translações. Mas como é travessa a imaginação! Quando não lhe amarram devidamente os braços, ela rouba os dados arquivados pela memória e combina-os a seu bel-prazer: do carro, desceram dois homens altos, o mais novo com um ramalhete nas mãos. Passaram por ele como se fosse um espectro e aninharam-se no regaço da senhora que jazia ao seu lado.
O velho passou o resto da tarde enterrado na poltrona. As pernas curvadas, o tronco rijo e os braços dependurados davam-lhe o aspecto de uma árvore necrosada.
– Doutor Andrade, hora do banho!
Ele sequer piscou. Os olhos inertes, sugados pela flor murcha no jardim, pareciam-lhe emprestados. Eram seis da tarde, mas o crepúsculo habitava-o há horas.
(Conto do livro “Violeta velha e outras flores”, 2014, Patuá. Autor: Matheus Arcaro)
Postado por Matheus Arcaro em 03/ago/2018 - Sem Comentários
Estou aqui há oito dias e alguns meses. Quantos meses? Não sei ao certo. Até a semana passada o calendário não passava de mais uma invenção vencida. O que sei é que estou nesta cela há tempo insuficiente. Está me ouvindo, Pagu? Parece mais peluda hoje, as patas maiores. Patas peludas e firmes, feitas para caminhar pelo teto, de onde você me vê como sou e não como parecia ser. Antes de me atirarem neste cubículo eu estava pronto, homem modelar. Sabia o que tinha que fazer. E fazia. E refazia. Usava o livre-arbítrio para alcançar a verdade que esperavam de um homem alto, 38 anos, cabelos grisalhos, chefe de família, empresário. Eu era. Até me enfiarem aqui. Só que eles se enganaram, Pagu. Todos eles. Ao me isolarem na solitária, não me privaram da liberdade. Privaram-me do que acreditam ser a liberdade, no que igualmente eu acreditava. Mas foi só aqui que conheci a verdadeira face da liberdade meses atrás: a chuva lavava os telhados; embora a cela estivesse tomada pelo hálito da penumbra, da minha cama vi a gota reluzindo no teto: as lágrimas começaram a desabrochar da alta fenda e despedaçarem-se no chão. Comecei também a chorar. Não somente porque fora educado a repetir, desta vez era diferente. O pranto, sem o soluço da dor, acordou o sorriso que há tempos não visitava meu rosto. A goteira ficou espessa, eu precisava entrar naquela torrente. Arranquei o macacão encardido, as meias, a cueca e corri para misturar minhas lágrimas com as do teto. E da água, antes translúcida, brotou uma espécie de corrente, mas cujo desenho, já não mais aquoso, foi aos poucos tomando a forma de… uma mulher! E como era maravilhosa. Linda o suficiente para um encantamento que me afogou numa emoção sem precedentes. Uma mulher de olhos ruivos. Quem é você? Sem dizer uma palavra, ela puxou minha pele, que facilmente se descolou da carne, feito estas paredes que você conhece tão bem. Depois, os músculos e os órgãos dissolveram-se com seu sopro: em instantes, eu era duas retinas suspensas e um coração pululando. Você não viu isso, não é mesmo? Acho que sequer era nascida. Pela primeira vez na vida eu era imperfeito. Incompleto. A partir deste banho, virei o avesso de Deus, um ser ébrio e imberbe, sem natureza (nem divina, nem humana), que não passa de criação! Lá fora, eu fora criado, avental e touca, servindo diariamente pedaços da minha vida ao destino. Ele comia, se lambuzava e, quando se dava por satisfeito, atirava os restos dentro de moldes construídos pelos Guardiões da Esperança. Só que aqui, Pagu, neste retângulo de seis metros quadrados, aprendi, como você, a arrancar do meu peito o fio sobre o qual eu passeio sem sair de mim. Mas terei que sair daqui a pouco. É o que diz na carta que o carcereiro me entregou semana passada. Envelope ocre, papel timbrado com as iniciais do doutor que conhece as vísceras da lei: “Ilmo. senhor Pedro, o pedido de soltura foi deferido; o senhor sairá em oito dias”. Eu contratei esse advogado? Para quê? Sua eficiência arremessou meu avesso à boca do desespero: à medida que os novos dias engoliam os velhos, o temor escorria do peito aos membros: as pernas estrangeiras do corpo, os braços rigidamente esticados ao longo do tronco. A lembrança de antes da solitária deixava meu futuro anestesiado. Não, não posso mais voltar a ser como aqueles senhores que caminham ao lado da vida; não suporto mais vestir a máscara que cada situação suplica; não quero mais enfiar meus sentimentos num saco sujo. Jamais imaginei que poderia arrancar as boias que me prendiam à minha superfície. Aliás, nunca cogitei a existência dessas boias. Foi somente aqui que me tornei um abismo negro, úmido e cálido por onde caio sem eriçar os pelos e, em cada centímetro, encontro os andaimes frouxos, as entranhas e as arestas que não quero mais aparar. Antes de os homens fardados me buscarem em casa naquela manhã ensolarada, eu percorria, de cabeça erguida, um caminho marcado com tinta indelével; por isso não enxergava o traçado. Aqui aprendi a dançar sobre a minha história que escrevo a lápis em páginas sem pautas, dançarino surdo carregado pelo ritmo da respiração. Aqui consegui ouvir a vida gritando em meus pulsos, consegui apanhar a eternidade em cada átimo e soltá-la para que tudo não passe de possibilidades. É, Pagu, o mundo é pequeno demais; eu só caibo nesta cela. Porém, desde que recebi aquele papel pálido, o cheiro inebriante que irrompia dos meus poros não frequenta mais minhas narinas. Naquele momento comecei a registrar os dias na pele com a ponta do canivete. Não me olhe assim. Coagido pela lei, tive que aguardar a oitava manhã e ela nasceu chorando como se compartilhasse com o meu espírito o estado agônico de quem está prestes a ser aprisionado. Ouço os passos do carcereiro marcados pelo balançar das chaves, ele está vindo abrir a cela, provavelmente com os dentes à mostra. O que farei? Permanecerei abraçado às grades implorando que me deixe aqui? Gritarei, Excelentíssimo senhor Juiz, eu me declaro culpado, sou uma ameaça à sociedade? Subornarei o diretor da cadeia? Não, nada disso funcionará. Irei, mas nem vou me despedir de você, porque darei um jeito de voltar ainda hoje. Ainda hoje.
Conto integrante do livro ‘Violeta velha e outras flores’. Patuá, 2014.
Postado por Matheus Arcaro em 03/ago/2018 - Sem Comentários
Cadê a Tereza? Faz tempo que ela não me dá banho. A mão da Tereza era leve, parecia o beija-flor que cheirava as flores da mamãe. Ela me deixava tão cheiroso que um dia quase o beija-flor veio me beijar. Ele não veio, mas a Tereza me beijou. Ela me beijava e abraçava e depois beijava de novo. E eu desenhava o cheiro dela enquanto ela passava a mão no meu rosto, temos que fazer essa barba hoje, Benjamim. Tá igual espinho. Espinho branco, onde já se viu? De manhã, à tarde e à noite ela me dava um monte de balinhas coloridas, sempre iguais. O gosto não era muito bom, por isso eu não queria comer. Mas ela dizia que era pra dar força pra minha cabeça, aí eu engolia sem mastigar. A Tereza cuidava de mim como se eu fosse um filho. Mulher foi feita pra ter filhos, ouvi vovó dizendo pra mamãe. É obrigado igual a ir na missa de domingo, vó? Ela só olhou pra mamãe espremendo os olhos, a boca feito um arco curvado pra baixo. Vovó falava bastante, mas agora eu não ouço mais a voz dela. Ela foi ficar junto com o vovô. Não sei como, mas lá de cima ela ouve tudo o que eu falo. Você acha que a camiseta vai sair por mágica, Benjamim? Levanta o braço direito. Não estou levantando direito, dona Elizabeth? O outro braço. Vamos, antes que a sua mãe chegue. Mamãe foi no circo com o Willian? Seu irmão está trabalhando, como faz todos os dias. Sua mãe também. Mamãe trabalha no circo? Bem que ela podia pedir emprestado o sapato do palhaço. Depois eu devolvia, era só pra mostrar pro Willian que o sapato não combina comigo. Mamãe deve ter ido conversar com o mágico pra ele fazer o papai reaparecer. Mas como será que ele entrou na cartola? Cadê a Tereza, dona Elizabeth? Mudou de cidade faz mais de três meses. Pra onde ela foi? Pra longe. Onde fica o longe? Serventia de mulher que não tem filho é limpar chão mesmo. A Tereza não serve só para limpar chão, eu queria ter gritado pra vovó. Mas meu silêncio alto chegou aos ouvidos da Tereza: ela sorriu pra mim com os olhos. Vamos tirar a bermuda, Benjamim. Será que a dona Elizabeth vai fazer aquilo de novo? Que bermuda imunda! Você rolou na terra a tarde toda? Fiz uma casa pro Dentuço perto das flores da mamãe. A senhora tem mais neve na cabeça do que eu. Está nevando lá fora? Papai Noel deve estar chegando. Outra coisa: a Tereza trata esse homem de um metro e oitenta como se fosse uma criança de sete anos. Assim ele vai continuar babando pelos cantos e rabiscando as paredes da casa até morrer. Um metro e oitenta é mais ou menos que a altura de um avião? Preciso mostrar pro Willian que eu sou grande e forte como o papai. Quem sabe ele para de dizer que eu tenho que ir pro hospital. Hospital é lugar de gente doente, eu fui lá ver a vovó antes do vovô puxar ela pra perto das nuvens. É tudo branco e a comida vem numa tigela de plástico rachado. Vovó não devia gostar daquela comida, por isso estava tão magra. Mamãe disse que ela não conseguia comer porque estava pagando não sei o quê, pecado, ruindade, não lembro. Como vou tirar sua cueca se você está com quase cem quilos? Me ajuda, Benjamim. Não adianta chorar, afasta os pés. Não me force a repetir o que fiz ontem. Passei a mão nas minhas pernas, das listras vermelhas ainda saltava uma coisa doída. A cinta que ela usou estava pendurada junto com a toalha. Alguém mexeu nas minhas joias, Carmen. Só pode ter sido esta negra fedida. Tereza era tão cheirosa. Eu desenhava o cheiro dela. Você tem que tomar uma atitude, filha. Fica quieto, senão vou te machucar com a lâmina. Levanta a cabeça, você tem muito pelo aqui no pescoço. Pelo é pra proteger do frio, por isso o Dentuço nunca fica resfriado. Ele é muito velho, só tem pelo branco. Eu tenho mais pelo preto que pelo branco. A vovó usava uma mágica pra sumir com os pelos brancos da cabeça. Mas não durava muito tempo, não. Logo os brancos iam empurrando os pretos e ela tinha que fazer a mágica de novo. Tá ardendo meu olho, dona Elizabeth. Como você é chorão! O que você tem no meio das pernas? Ela sabe o que tenho no meio das pernas. Enfia a cabeça embaixo d’água, Benjamim. Assim, rapaz! Mas eu não consigo respirar, preciso de uma máscara de mergulhar igual uma que vi na televisão. Eu já assisti um monte de coisa legal na televisão. A senhora tem televisão, dona Elizabeth? Eu não peguei joia nenhuma. A senhora me conhece desde que nasceu, dona Carmen, e sabe muito bem que eu sou direita. Eu nem tenho pescoço pra usar essas coisas. Por que você acha que essa preta nunca teve filhos, Carmen? Que homem ia sujar o pau com ela? A senhora sempre procurando um jeito pra acabar comigo, né, dona Lúcia?! Mas o seu Horácio, que Deus o tenha, não achava a nega aqui fedida. Lave a boca pra falar do meu marido, velha encardida. Ele me procurava quase toda noite no quartinho, a senhora sabe muito bem. Leva o seu irmão lá pra fora, Willian. A Tereza também dava banho no vovô, Willian? Levanta o braço. Deixa eu esfregar aqui, vira. Vira mais. Benjamim, você tomou os remédios da tarde? Cadê a Tereza? Cadê a Tereza? A Tereza contava história enquanto me dava banho. Ela disse uma vez que conheceu o mundo inteiro num dia só. Ela ia de cidade em cidade voando de balão e fotografava tudo lá de cima. Ela me mostrou as fotos no computador do Willian. A senhora já viu as fotos? Mas demorou muito pra ela me mostrar porque ele não queria emprestar o computador. Disse que o computador era pra trabalho, não pra essas coisas que não servem pra nada. Como a gente mede a serventia de uma coisa? A Tereza não sabe roubar nada não, Willian. Eu sempre deixei meus bonecos em cima da cama, no chão, no banheiro e eles sempre estavam lá quietinhos quando eu voltava. Às vezes ela punha em cima do armário, é verdade. Mas nunca sumiu nenhum. Você está me molhando inteira, Benjamim, olha só a minha blusa. Desculpa. Vou estender a blusa aqui no box. Ontem a senhora estendeu na maçaneta, dona Elizabeth, lembra? Ou foi antes de ontem? Eu não quero que a Tereza vá embora, mamãe. Você tem que falar pra vovó que ela não fez nada. Ela cuida de mim como se eu fosse o filho dela. Como um neto, Benjamim. Ela cuida de você como um neto. Dona Elizabeth, a calça da senhora também molhou? Você já consegue entender como é a sua vó Lúcia. Quando ela põe uma coisa na cabeça não há quem tire, filho. Vem, eu vou te dar seu remedinho da noite. Mas a Tereza vai sair assim nesse escuro, mãe? E se o homem do saco pegar ela? E se a menina do Exorcista vomitar verde na cara dela como fez com o padre? Ela vai pegar doença. A Tereza não pegava assim em mim. Eu não pegava assim na Tereza. O que é isso que acontece quando a dona Elizabeth pega em mim? Eu não gosto do que acontece. Não posso gostar. Por que a senhora não é tão branca como a vovó, mamãe? Que pergunta! As pessoas nascem diferentes, Benjamim. Veja, você não é igual ao seu irmão. Como eu sou, mãe? Você é um homem bom, muito especial. Um anjo de Deus. Dona Elizabeth, não gosto de fazer isso. Eu sinto um negócio estranho, parece que alguma coisa aqui dentro cresce, cresce, cresce até explodir. Tenho medo. Ai, Benjamim, cala a boca. É só você ficar paradinho aí na parede que eu faço o resto. Mas eu não consigo ficar paradinho, o azulejo está frio. Põe uma toalha nas costas e outra na boca. Benjamim, esta é a Beth. Ela vai cuidar de você como a Tereza cuidava. A partir de agora você tem que obedecer a Beth, ouviu bem? Fecha a tampa do vaso e senta aí. Isso. Mas a senhora é muito pesada pra sentar no meu colo. Vai. Bem-ja-mim! Bem-ja-mim! Já! Já! Para, dona Elizabeth, por favor. Para. Para! Endoidou de vez? Me dá essa lâmina, Benjamim. O que você está fazendo, retardado? Ai! Para, débil mental. Demente filho da puta. Socorro! A senhora nunca mais vai fazer isso comigo. Nunca mais. Nunca… Dona Elizabeth! Dona Elizabeth, a senhora está me ouvindo? Tereza! Tereza, cadê você?
Postado por Matheus Arcaro em 03/ago/2018 - Sem Comentários
Uma rosa ali? Flores não são criaturas de dignidade. Ele atravessa a rua. Eu não devia voltar a pé do trabalho no primeiro dia. Colega de escritório hoje perguntou o que era aquela pasta vermelha cuspida pelas montanhas, viu na TV. É deus esfregando a beleza na cara da gente, respondi. Não vou chegar em casa antes do sol se pôr. O céu já está tomado de tons, o disco alaranjado a descer devagar. É, dois anos e três meses não foram suficientes! Quantos gritos se escondem no peito de quem vê a Pietá? Os olhos molhados na órbita de um mundo esculpido: eu e Pietá, a dois metros. Michelangelo, torturador. Triturei as lembranças da Europa, as lembranças de onde te conheci. O cheiro que escapa desta janela, a própria Paella a tomar minhas narinas e colonizar meu corpo e me arrebentar por dentro. Ele corre, corre mais. Mas este não é o caminho de casa. Outra flor, lírio branco, não é possível! Uma galeria de arte? Sim, mais dez passos e chego a uma galeria de arte. Chegaria! Antes a cegueira que os girassóis de Van Gogh. Mesmo as reproduções não cabem na minha retina. Não mais. Dois anos e três meses não foram suficientes! Preciso voltar. Entra numa ruela, as luzes dos postes começam a se acender. Voltar com ela. Por que não me casei? Primeiro porque tenho aversão a igrejas. Ah, Gaudí, a Sagrada Família, Barcelona, como arrancar da memória? Segundo porque Clarice se foi. As recordações não rasgadas conforme o protocolo. Um dia, era eu muito pequeno, vi uma borboleta, a primeira da vida. Contei a ti, descrevi as cores flutuando a dois palmos do meu nariz, e tu me disseste, com a voz trêmula, que quem mata uma barata é herói, quem mata uma borboleta é vilão. Dois anos e três meses não foram suficientes! O senhor não parece bem. Ele se senta na cadeira oferecida pela idosa. Aceito, mas não muito gelada. Esta senhora me esfaqueia por dentro, sua generosidade. Madre Teresa, Gandhi, vidas a serem emolduradas na parede principal da sala de estar. Os seres que não aprenderam com as Guerras, com o Leviatã, com as crianças que roubam merenda do coleguinha. Atrapalho, senhora? Não, não. Assistia a um filme, mas não há problema. Qual? Morte em Veneza, o senhor deve conhecer. Esse tipo de zombaria é inaceitável! Me esforço, preencho os vãos da mente com as tarefas do dia, é inútil. A última cena me invade. Tadzio, feito uma escultura grega, contra o sol, mar à altura dos joelhos. A sinfonia de Mahler. Ele sai da casa da idosa em silêncio, copo na mão. Meus pulmões comprimidos. Meus comprimidos, onde estão? Dois anos e três meses não foram suficientes! Assim que acordo, todo dia, três copos parecidos com este, cheios. Mas é impossível inundar os sonhos, é impossível afogar o passado, é impossível não pensar na tua beleza. O mar é maior quando se está distante, o cheiro engastalhado na lembrança. Esta água está salgada! Ele cospe e arremessa o copo que se espatifa, os cacos entre os paralelepípedos. Preciso das minhas janelas fechadas, o quarto a sentir pena de mim. Dó, compaixão. O mofo, meus sentidos protegidos. Por que saí da penumbra? Ah, minha mãe e a mania de me querer cuidar! A farmácia na esquina, estou no caminho de casa. O céu, semiescuro. De súbito, um relâmpago. Aperto os olhos, não por medo, mas pra não ver aquele risco carregado; aquele azul incandescente que, bem provável, nasceu na paleta de Monet e deus plagiou. A visão a se entregar, um tapa em cada face. Beliscão, música do elefante que incomoda muita gente. Não, dois anos e três meses não foram suficientes! É a quinta de Beethoven! Onde? Beethoven não merecia ter vivido. Nem Clarice. Ali, naquela casa! Tapa os ouvidos com os indicadores. As magrezas da música se esquivam dos dedos-guardiões, o coração escala a garganta. Everest, Machu Picchu, Pirâmide de Quéops, o bar da Vila perto de casa, tudo isso é muito para as memórias de um homem só. Ele acelera o passo, mas os pingos o alcançam antes que abra o portão. Clarice! Senta-se na poltrona, encharcado. Eu não devia ter saído do quarto. Definitivamente dois anos e três meses não foram suficientes! Ele refaz, no pensamento, a caminhada de volta do primeiro dia de trabalho. Mas dez anos seriam suficientes? Vinte seriam? Há tecidos que não são remendáveis, por mais treino que tenha a agulha. Ele cochila e acorda enxuto. O que me resta? Acomodar-me à alma rasgada. Depois de alguns minutos, apanha, no cimo do armário, a caixa de papelão e retira a fotografia de Clarice. É o que me resta. Limpa a espessa camada de poeira e repõe a fotografia no porta-retratos sobre o criado-mudo ao lado da cama.
Postado por Matheus Arcaro em 03/ago/2018 - Sem Comentários
Tarsila entra às pressas. Sequer limpa os pezinhos no capacho como sempre fazia a pedido da mãe. Mamãe, corre aqui! Tô escrevendo, filha. O que foi? A menina incha os pulmões, o segundo grito sai mais encorpado, percorre os cômodos da casa e traz Laura à sala. Óculos na testa, caneta na boca, o rosto a transpirar maternidade. As pegadas de barro no piso de madeira não são notadas pela mulher como habitualmente seriam. Tarsila abre as mãos como se desvendasse as entranhas do mundo. O pássaro consegue ser menor que os dedos dela que crescem há apenas seis anos. Oh, deve ter caído do ninho, filha!
Para o bem-te-vi, naquele instante, respirar é uma tarefa difícil, talvez a mais difícil que a biologia já lhe impusera. Temos que levar ele ao médico de bichinhos, mamãe! Hoje é domingo, meu amor. Eles não trabalham. Mas o doutor Hernandez trabalha. Ele já veio aqui ver a Mimosa de domingo, lembra? Doutor Hernandez só cuida de bicho grande. Mas vou tentar falar com ele.
Laura tecla números aleatórios e encosta o celular à orelha. Sim, entendo, doutor. É, parece que ele está respirando. Com dificuldade. Mas não abre os olhos nem se mexe. Tudo bem. Entendi. De qualquer forma, muito obrigada. Tarsila, com as sobrancelhas franzidas e a respiração ofegante, acaricia o bem-te-vi, o indicador a derramar ternura na cabecinha penada. Filha, o veterinário disse que está em outra cidade. E disse também que não há muito o que fazer nestas horas.
A menina espirra água na cara da ave. Liga o ventilador e coloca o pássaro bem próximo ao vento. Quem sabe ajuda ele a respirar, mamãe. Laura acompanha o procedimento da filha e se pergunta quando, para ela, a parte verde da vida perdeu o fulgor. Tarsila não deita as vistas no pássaro. Não diretamente. Olha de soslaio, várias vezes, até pedir à mãe uma análise mais detida do bicho, sem tirá-lo da caminha feita com as mãos. A mulher aproxima o rosto das mãozinhas em concha, poucos centímetros. Não solta uma palavra. Os olhos nos olhos da filha. A linguagem da vida (e da morte, que são diferentes apenas por uma questão de perspectiva) perpassa os três corpos: o grande, chancelado pelos anos, pelas conquistas e frustrações; o pequeno, em plena primeira defloração e o inanimado.
Pra onde a gente vai quando morre? Ninguém tem a resposta, filha. E nunca vai ter. Acho que morrer é voltar pras estrelas. Hum. Mas como? Quando aquele bicho que eu não lembro o nome morreu, doutor Hernandez colocou ele debaixo da terra. O que fica debaixo da terra é a parte que desmancha, que vira comida pras plantas. O sol que entra pela janela rústica, quase um holofote, pinta de dourado os dedinhos de Tarsila que continuam a acariciar o bem-te-vi. Talvez, filha, morrer seja ficar guardado na lembrança dos que amaram aquela pessoa. Só pessoas, mamãe? Não, não, bichos também. O Pichuco vai ficar pra sempre dentro da minha cabeça. E aqui também. A menina encosta a mão no peito. Laura sorri ao ouvir o nome que a filha acaba de cunhar ao pássaro. Sorri mais quando vê o movimento daquela mãozinha que ela conhece tão bem.
Mas, de súbito, o rosto de Tarsila toma outra forma. Ela levanta os cílios para a mãe e respira fundo. Papai morreu. Você sabe que não, Tarsila. Morreu sim. Está morto quem a gente sabe que nunca mais vai encontrar. Seu pai fez as escolhas dele. Mas ele sempre será seu pai. Não importa onde esteja e o que esteja fazendo. Laura apanha o retrato do alto da estante. Assopra a poeira e estica o objeto à filha. Aqui você no colo dele quando tinha onze meses. Mãe, vejo isso todo dia. Mas essa foto não me abraça.
A menina encosta a ave no ombro. Laura abraça Tarsila. O silêncio constrói uma ponte entre as duas. Você vai morrer, mamãe? Sim, filha. E quem vai cuidar de mim? Ah, vai demorar bastante pra mamãe morrer. Até lá, você vai saber se cuidar sozinha. Tarsila espreme os olhos. Será que o Pichuco vai encontrar o irmãozinho que eu não tive? Laura engole a saliva como se fosse o feto que, há quatro anos, tiraram sem vida do seu útero. Retoma o fôlego e olha para a menina. Não sei, minha filha. Não sei. Eu acho que não, mamãe. E por quê? Como tem jeito de alguém morrer se ainda nem nasceu? A mulher não responde. Mesmo trabalhando por mais de três décadas com as palavras, elas teimam em fugir. Parecem saber que não dão conta das acontecências mais profundas. O abraço se torna mais apertado, mãe e filha a se misturarem. Após alguns segundos, Laura diz que é preciso devolver o pássaro à terra.
As duas saem. A lua, aos poucos, toma o lugar do sol. Parece querer espreitar o rito. Laura, com uma colher, cava um buraco na grama do quintal, próximo ao cipreste. Tarsila coloca o pássaro e, com as mãozinhas, puxa terra para a cova. Enquanto, com as lágrimas, rega a montanha em miniatura, diz à mãe que ali nascerá uma árvore cheia de galhos, para que muitos Pichucos possam fazer seus ninhos. Mas uma árvore pequena. Porque, mamãe, se os passarinhos caírem, eles não se machucam.
Conto pertencente ao livro “Amortalha”, publicado em outubro de 2017 pela Patuá.
Postado por Matheus Arcaro em 03/ago/2018 - Sem Comentários
Os filhos amam a mãe desde o início, mas o pai, o pai os filhos
têm de aprender a amar porque sempre estiveram fora dele.
(João Carrascoza)
É verdade, nunca vi teu rosto, tua pele, teus olhos. Mas o que sinto é algo que tenta se ajeitar nas minhas frestas e acaba vazando. Primeiro, pelos olhos: o líquido a escorrer rosto abaixo e salgar os lábios. Segundo, pela boca: as palavras trôpegas de um homem que nunca falou com alguém cuja carne é fruto da carne dele. Mas eu falo. Falo e sei que tu me escutas. Sei que reconheces na minha voz o veículo do afeto. Tua mãe está deitada no sofá, exibindo pra mim a parte de fora da tua casa. A barriga que te carrega, apesar de pouco mais da metade do tamanho previsto, é tão plena, tão cheia de ti! Creio que concordarás comigo quando vires as fotografias.
Ontem confirmamos o que sabíamos pelas artérias da intuição: tu és Antonella. Conforme a médica passava o aparelho pela barriga intumescida, tu ias te construindo na tela preta. De repente, te mostraste completa como um deus. Ou melhor, deusa. Tu, naquela sala esbranquiçada, me gritaste que não serás princesa ou boneca. Tu, como carregas no corpo – ainda em formação – o sangue da tua mãe, hás de ser como ela, Atena ou Tanit, a levar o presente nos dentes e o futuro no peito. Tua mãe, que agora coloca minha mão em ti, é a mulher com quem pretendo ver-te crescer. Tua mãe que, antes de ser tua mãe, é minha esposa e antes de ser minha esposa, é mãe do Arthur. Mas antes de ser mãe do Arthur é mulher. A mulher que soube transformar em palco as pedras do caminho. Agora me pego a perguntar ao tempo sobre o desenho que ele fará de ti. Provavelmente, terás da tua mãe os cabelos cacheados e os olhos verdes. O formato do nariz, delicado feito a lágrima de uma idosa, pude ver ontem graças à tecnologia.
Ela está chutando, amor. Sim, tu já respondes, Antonella. Saber que os dias tecem camadas de humanidade em ti me leva a pensar, toda noite assim que entrego a cabeça ao travesseiro, em nosso primeiro abraço. Me faz imaginar a primeira estória que te contarei. Me faz pensar em teus primeiros passos, teu primeiro dia de aula, tua primeira desilusão amorosa. Talvez meu colo não esteja disponível em todas as tuas primeiras vezes, talvez a poeira da rotina se assente entre nós. Mas, se isso acontecer, cuidarei para que o espanador esteja sempre ao nosso alcance.
No momento em que soube da tua vinda – tua mãe me enviou a imagem “eu já amo o papai” pelo celular –, minhas pernas se transformaram em estrangeiras do corpo. Não soube o que responder, a mensagem de volta foi, no mínimo, estúpida. Contudo, depois de alguns minutos, minhas costelas pareciam mais estufadas que o possível. Queria gritar, minha filha, queria abraçar o instante, queria mergulhar em tua mãe pra beijar o que se tornaria tu. Teu irmão, logo que soube, começou a conversar contigo, dizer que te ama e que cuidará de ti. Será com ele que descobrirás algumas das entrelinhas da vida. Teus avós, teus tios, os amigos do teu pai e da tua mãe, todos já te envolveram numa manta de carinho. E eu, Antonella, estarei a vida toda a remendar esta manta, caso ela se desgaste.
Filha, é bom que saibas: o ser humano não é como o apresentam nas histórias de herói. Às vezes, ele pratica o mal em nome da justiça, às vezes diz uma coisa e faz outra, às vezes enterra um punhal no peito de quem ama. É bom que saibas que, enquanto algumas pessoas apanham migalhas para tapar os buracos do estômago, outras descartam comida como se fosse água barrenta. É bom que saibas que há pessoas que julgam importante a cor da outra pessoa e o que ela carrega nos bolsos. Saibas, Antonella, que, por seres mulher, o mundo, diversas vezes, vai te esfregar a proibição nas vistas. Vai te trancar portas e podar possibilidades. Vai esconder por trás de discursos coerentes o cimento que ergue a intransigência.
Não, não quero borrar tua visão com meus juízos. Não quero mostrar-te apenas a parte suja dos fatos. Estou certo de que não te assustarás com minhas palavras, mas as usará como combustível pro teu combate diário. Além disso, tu provarás, feito um faminto, a porção suculenta da vida e, com ela, lambuzarás a alma. De alguns destes momentos, sei que vou participar. Passearemos no parque em muitos finais de tarde, iremos ao cinema, falaremos sobre as danças da existência e, com tua mãe e teu irmão, chegaremos à ousada conclusão de que a vida, justamente pela ausência de sentido prévio, tem o vigor de uma bailarina.
Observando tua mãe que cochilou há alguns minutos, filha, pula-me à mente o sono do qual não conseguirei escapar. E o imagino sem muitos pesares. Tu sentada na cama a falares com teu pai que já não fala, sorrindo pela lembrança da nossa biografia entrelaçada. Eu com o peito repleto ao recordar dos momentos em que colorimos a vida. Nós a sorvermos os instantes que restam como se usássemos os pulmões de Cronos.