Uma rosa ali? Flores não são criaturas de dignidade. Ele atravessa a rua. Eu não devia voltar a pé do trabalho no primeiro dia. Colega de escritório hoje perguntou o que era aquela pasta vermelha cuspida pelas montanhas, viu na TV. É deus esfregando a beleza na cara da gente, respondi. Não vou chegar em casa antes do sol se pôr. O céu já está tomado de tons, o disco alaranjado a descer devagar. É, dois anos e três meses não foram suficientes! Quantos gritos se escondem no peito de quem vê a Pietá? Os olhos molhados na órbita de um mundo esculpido: eu e Pietá, a dois metros. Michelangelo, torturador. Triturei as lembranças da Europa, as lembranças de onde te conheci. O cheiro que escapa desta janela, a própria Paella a tomar minhas narinas e colonizar meu corpo e me arrebentar por dentro. Ele corre, corre mais. Mas este não é o caminho de casa. Outra flor, lírio branco, não é possível! Uma galeria de arte? Sim, mais dez passos e chego a uma galeria de arte. Chegaria! Antes a cegueira que os girassóis de Van Gogh. Mesmo as reproduções não cabem na minha retina. Não mais. Dois anos e três meses não foram suficientes! Preciso voltar. Entra numa ruela, as luzes dos postes começam a se acender. Voltar com ela. Por que não me casei? Primeiro porque tenho aversão a igrejas. Ah, Gaudí, a Sagrada Família, Barcelona, como arrancar da memória? Segundo porque Clarice se foi. As recordações não rasgadas conforme o protocolo. Um dia, era eu muito pequeno, vi uma borboleta, a primeira da vida. Contei a ti, descrevi as cores flutuando a dois palmos do meu nariz, e tu me disseste, com a voz trêmula, que quem mata uma barata é herói, quem mata uma borboleta é vilão. Dois anos e três meses não foram suficientes! O senhor não parece bem. Ele se senta na cadeira oferecida pela idosa. Aceito, mas não muito gelada. Esta senhora me esfaqueia por dentro, sua generosidade. Madre Teresa, Gandhi, vidas a serem emolduradas na parede principal da sala de estar. Os seres que não aprenderam com as Guerras, com o Leviatã, com as crianças que roubam merenda do coleguinha. Atrapalho, senhora? Não, não. Assistia a um filme, mas não há problema. Qual? Morte em Veneza, o senhor deve conhecer. Esse tipo de zombaria é inaceitável! Me esforço, preencho os vãos da mente com as tarefas do dia, é inútil. A última cena me invade. Tadzio, feito uma escultura grega, contra o sol, mar à altura dos joelhos. A sinfonia de Mahler. Ele sai da casa da idosa em silêncio, copo na mão. Meus pulmões comprimidos. Meus comprimidos, onde estão? Dois anos e três meses não foram suficientes! Assim que acordo, todo dia, três copos parecidos com este, cheios. Mas é impossível inundar os sonhos, é impossível afogar o passado, é impossível não pensar na tua beleza. O mar é maior quando se está distante, o cheiro engastalhado na lembrança. Esta água está salgada! Ele cospe e arremessa o copo que se espatifa, os cacos entre os paralelepípedos. Preciso das minhas janelas fechadas, o quarto a sentir pena de mim. Dó, compaixão. O mofo, meus sentidos protegidos. Por que saí da penumbra? Ah, minha mãe e a mania de me querer cuidar! A farmácia na esquina, estou no caminho de casa. O céu, semiescuro. De súbito, um relâmpago. Aperto os olhos, não por medo, mas pra não ver aquele risco carregado; aquele azul incandescente que, bem provável, nasceu na paleta de Monet e deus plagiou. A visão a se entregar, um tapa em cada face. Beliscão, música do elefante que incomoda muita gente. Não, dois anos e três meses não foram suficientes! É a quinta de Beethoven! Onde? Beethoven não merecia ter vivido. Nem Clarice. Ali, naquela casa! Tapa os ouvidos com os indicadores. As magrezas da música se esquivam dos dedos-guardiões, o coração escala a garganta. Everest, Machu Picchu, Pirâmide de Quéops, o bar da Vila perto de casa, tudo isso é muito para as memórias de um homem só. Ele acelera o passo, mas os pingos o alcançam antes que abra o portão. Clarice! Senta-se na poltrona, encharcado. Eu não devia ter saído do quarto. Definitivamente dois anos e três meses não foram suficientes! Ele refaz, no pensamento, a caminhada de volta do primeiro dia de trabalho. Mas dez anos seriam suficientes? Vinte seriam? Há tecidos que não são remendáveis, por mais treino que tenha a agulha. Ele cochila e acorda enxuto. O que me resta? Acomodar-me à alma rasgada. Depois de alguns minutos, apanha, no cimo do armário, a caixa de papelão e retira a fotografia de Clarice. É o que me resta. Limpa a espessa camada de poeira e repõe a fotografia no porta-retratos sobre o criado-mudo ao lado da cama.
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme, no coração?
(Caetano Veloso)