Talvez a pergunta que intitula esse texto seja uma das mais formuladas a um artista. E ele, se não quiser ser mal educado, faz uma breve contextualização do conceito para mostrar que a inspiração, em si, nos moldes que a tradição cunhou, não existe.
A palavra inspiração é de origem latina e, grosso modo, significa “soprar” ou “insuflar”. Grande parte dos dicionários contemporâneos define inspiração como uma sugestão de origem transcendente que excita o artista a produzir. Trata-se, portanto, de um conceito metafísico que coloca o artista como uma espécie de “médium” que, para criar, recebe um “sopro divino”.
Segundo a maioria das religiões, os livros sagrados foram “inspirados”. Basta pensarmos nos evangelistas cristãos ou em Maomé, que escreveu o Corão sendo praticamente analfabeto. Especificamente no âmbito literário, desde as epopeias homéricas, o poeta é um inspirado pelas Musas. Era a relação entre o humano e o divino que possibilitava o canto capaz de expressar os eventos passados, presentes e futuros, cujo conhecimento era interditado aos homens comuns. Platão, em seu diálogo “Íon” é enfático a esse respeito: “Não é por efeito da arte, mas pela ação de um deus que neles reside e os possui, que todos os bons poetas épicos compõem os belos poemas, coisa que também se pode dizer dos bons autores de cantos líricos.”
Em tempos mais recentes, o período áureo da ideia de inspiração ocorreu no Romantismo. Foi na Escola Romântica que se intensificou o culto ao Eu e, assim, emergiu a figura do gênio. O filósofo Immanuel Kant definiu gênio como “o talento que fornece regra à arte”. Ou seja: é através do gênio que a natureza molda suas diretrizes. Foi com Kant também que ganhou peso a ideia de originalidade (até o início da modernidade, possuía mais valor o que era copiado dos grandes mestres). E quem era o gênio capaz de originalidade? Aquele que tinha a possiblidade de ser inspirado. Assim, percebemos a arte ultrapassando o artista, que era uma espécie de títere, conduzido pela inspiração ao reino da originalidade.
Todavia, no início do século XX, devido a inúmeros fatores culturais, intelectuais e estéticos (incabíveis nessa reflexão) a ideia de inspiração começou a se esvanecer. O que se chamava de inspiração, passou a ser visto como a soma de algumas propriedades.
A primeira delas é o exercício. Certa vez, o músico Soraste afirmou: “Durante 27 anos pratiquei 14 horas por dia e, agora que cheguei nesse estágio, chamam-me de gênio”. Com isso, óbvio, não sentenciamos que alguém que treine por um longo período, necessariamente, será gênio. É aí que entra o segundo (e talvez mais importante) atributo: o talento ou a tendência natural (que nada tem a ver com algo divino). É espantoso pensar que Wolfgang Amadeus Mozart com 6 anos tocava suas primeiras sonatas. Para explicar casos como os de Mozart a ciência lança mão de algumas hipóteses. Uma delas sustenta que as células cerebrais no superdotado têm um número maior de conexões entre si do que numa pessoa “comum”. Outro ramo de pesquisa defende que a genialidade não está vinculada à bagagem genética e sim aos estímulos que a criança recebe nos 3 primeiros anos de vida. De qualquer modo, independente da explicação técnica para isso, fato é que a aptidão é fundamental para a criação.
O terceiro atributo chamamos aqui de bagagem, o que não se resume somente a experiências intelectuais, mas também à esfera cultural e emocional. São todas as vivências calcadas em erros e acertos e, claro, em estudos, pesquisas e aprendizados. Se quero ser escritor (e tenho aptidão para isso) é provável que minha criação melhore muito se eu conhecer as grandes obras da literatura universal (embora a Clarice Lispector não concordasse muito com isso). Talvez aqui caiba uma observação sobre o aparelho psíquico. Depois de Freud, não é lícito relegar a participação do inconsciente na criação artística. Mas se ele não for visto com cautela, corre-se o risco de o interpretarmos como uma “inspiração interior”, tão mística quanto a inspiração romântica. De fato, o inconsciente é capaz de fazer conexões inesperadas. Porém, tais conexões nada têm a ver com algo transcendente. São, ao contrário, alicerçadas em desejos, prazeres e frustrações. Em termos simples: na própria vivência do indivíduo.
Por fim, é preciso ter em conta a disposição (física e mental); o estado de ânimo do momento. Assim como há dias em que um vendedor está mais animado para atender seus clientes (e, por conseguinte, tem mais chances de fazer boas vendas), o artista está mais disposto para escrever, pintar ou compor. Trazendo a questão para um terreno que dizem ser de conhecimento amplo dos brasileiros: certa vez meu pai me disse que, apesar da baixa recorrência, já viu atuações pífias do Pelé. E isso, segundo o que discutimos, não tem relação com o descuido da divindade que, no momento dos jogos, o habitava. Pelé simplesmente não estava em um “dia bom”.
Evidentemente as características acima mencionadas podem aparecer em maior ou menor grau ou serem rearranjadas de inúmeras formas.
Como adendo, mas de modo não menos importante, é digno de destaque o papel do acaso nas criações artísticas. Se pensarmos em Jackson Pollock, essa ideia toma contornos mais nítidos: foi por descuido (um fio de tinta que escorreu no tecido esticado no chão) que surgiu um dos maiores artistas expressionistas do século XX.
Algumas objeções podem surgir à linha argumentativa proposta, alegando que se trata de um rigor terminológico desnecessário. Contudo, nunca é demais ressaltar que a linguagem ordinária está permeada de metafísica. Por isso, com perspicácia, Nietzsche escrevera que “não nos livraremos de Deus enquanto acreditarmos na gramática.” Destarte, eis o corolário: a inspiração expirou.