Morrer é voltar para as estrelas

(Resenha publicada por Luigi Ricciardi originalmente no Acrópole Revisitada)

Dizem, muitos dos filósofos que se dedicam a pensar sobre a morte e sua relação com as sociedades, que a experiência de morte é intransferível e jamais, deveras, compartilhada. O luto, a saudade e a dor sim são elementos que compartilhamos quando alguém querido de nosso entorno nos deixa (com ou sem aviso). Entretanto, a experiência da morte seria única, pertencente a cada ser, à sua maneira. A nossa morte é única, embora a ideia de morte seja partilhada.

O que dizer então sobre as pequenas mortes que temos no cotidiano da vida (não falo da petite mort, essa que nos transcende)? Se  biologicamente não morremos de supetão, pois o corpo vai envelhecendo pouco a pouco e, assim, morrendo, o que dizer das mortes dos sonhos, dos amores, das coisas queridas como um todo? A morte rouba os amores que nunca, de fato, nos pertenceram. Essas podem ser compartilhadas.

Aliás, amor e morte, geralmente classificados como opostos e distantes, tendem a se tocar muitas vezes na vida. Por isso o título “Amortalha” foi uma ótima escolha vocabular de Matheus Arcaro para seu livro de contos, publicado pela Patuá em 2017. O que o título quer mesmo dizer? Apenas vestir com mortalha um corpo morto ou relacionar amor e morte em uma só palavra que cobre o ser humano em sua total existência? A resposta fica para o leitor.

A morte pode significar um certo renascimento como em “Fora do ar”, conto pincelado de fantástico, que substitui o “assistir” pelo “ver”, da passividade à ação. A poeticidade da morte, pelo olhar de uma criança em “Pra onde a gente vai?” é ligada ao ciclo da vida: não se vai, fica-se, renova-se. Há várias mortes que tocam a personagem Sara em o conto “Fé”, um esquartejamento de esperanças que vai decepando os membros dessa fé nas coisas, para salvar o amor que tem.

Como classificar a morte da esperança de um professor, que faz brilhar os olhos de um aluno, cujo comportamento futuro, acrescido de desculpas, destrói um corpo surrado pelo trabalho e tempo? E a morte dos sonhos de uma criança, que após passar anos conjecturando coisas, deixa-se levar à vontade dos outros? São mortes ressignificadas, transvestidas de não morte.

Mas também há, no livro, a morte mais dura, a inevitável foice à qual renunciamos quando ela aparece no portão a assombrar. Em “D. Nenê”, a luta contra a inevitabilidade é dramática. É também uma luta contra o esquecimento e o abandono. Uma luta perdida de antemão. Há também a morte de um amor, que só funciona quando mudo. Sons e palavras são facas assassinas em “Palavras mudas”.

O tragicômico também tem espaço no livro de Arcaro. Em “Linha da vida”, um filósofo trabalha em um centro de atendimento ao depressivo. Atende pessoas que têm vontade de se matar e buscam auxílio para não executar tal ato justamente nesse centro de atendimento. O olhar do filósofo, fatalmente, incentivará, sem querer, a fatalidade.

Destaque ainda para “Salvação”. Contos que trazem uma espécie de reatualização da personagem Baleia de Graciliano Ramos são sempre contos que trazem no seu bojo o amor e a morte de mãos dadas. Com bons momentos poéticos a permear as narrativas, “Amortalha” é um livro para se ler com coração e foice lado a lado.

 

 

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