O ser humano como artista de si

Certo dia uma aluna me disse que passava por um momento difícil e perguntou se eu conhecia algum filósofo que tivesse utilizado seu sofrimento como material filosófico. Na hora fiquei comovido, baqueado e, feito uma flecha, veio-me Friedrich Nietzsche à mente. Respondi, citei algumas passagens, porém, analisando mais tarde com cautela, a resposta não me pareceu satisfatória. Respondi, então, em forma de texto público porque, afinal, é provável que seja útil a mais gente.

Nietzsche, quando jovem, foi admirador da filosofia de Arthur Schopenhauer. Para Schopenhauer, a vida não tem sentido porque o homem nada mais é do que uma manifestação da Vontade Una, uma força metafísica cega e irracional. Todo prazer é ponto de partida de uma nova aspiração. Em uma sentença célebre, fica claro o niilismo de Schopenhauer: “a vida não passa de um pêndulo entre o sofrimento e o tédio”. Em suma, viver é sofrer.

Com a publicação de “Humano, demasiado humano” (1878), Nietzsche rompe com seu “mestre”; o pessimismo schopenhauriano definitivamente não era uma boa contribuição para o ser humano. A vontade, para Nietzsche, não deve ser negada, mas afirmada, como criadora, uma vontade plural, múltipla, que ele chamou de “vontade de poder”. Eis que a noção de “afirmação da vida” começa a tomar força em sua obra.

Escreveu Nietzsche no Crepúsculo dos ídolos: “O que não provoca minha morte faz com que eu fique mais forte”. Embora tal frase tenha sido vulgarizada nos livros de autoajuda, ela tem um substrato potentíssimo.

A vida de Nietzsche não foi fácil. Sofreu com terríveis enxaquecas, dores nos olhos e no estômago, insônia e náusea. O suicídio passou várias vezes por sua mente. “Pois o terrível e quase incessante martírio de minha vida me dá sede de morrer”, escreveu em 1879. Nesse período, afirmou a amigos que passava três quartos de seu tempo com dores e o restante estafado. Todavia, os períodos de sofrimento mais profundo foram os de maior produção filosófica. A dor passou a ser uma preciosa ferramenta de transgressão e afirmação de si. Dois conceitos, entrelaçados entre si, são essenciais para percebermos o que a frase de Nietzsche realmente significa.

O primeiro, Eterno Retorno, é um norteador afirmativo da vida, da aceitação de todos os acontecimentos independente de seus resultados. Escreve Nietzsche na Gaia Ciência:

“E se um dia um demônio te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda inúmeras vezes; e não haverá nada de novo, cada dor, cada prazer, cada pensamento e suspiro e tudo o que há de pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência. O que farias? Rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou responderias: ‘Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!’ Se este pensamento adquirisse poder sobre ti, ele te transformaria e talvez te torturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: ‘Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?’ pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir? Ou então, como terias de ficar bem contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa eterna confirmação e chancela?”

Em termos sucintos: você teria coragem de repetir sua vida exatamente como ela foi até agora? De aceitar que se repetisse por toda eternidade cada alegria e cada tristeza, cada prazer e cada dor? O eterno retorno é uma navalha existencial. É a hipótese vital que nos incita à afirmação integral da vida.

O segundo, espécie de desdobramento do Eterno Retorno, é o “amor-fati”. De acordo com Nietzsche, é preciso amar o que aconteceu, ou seja, encontrar beleza no necessário, no inexorável, tanto para momentos de felicidade como para momentos de desespero. Transformar o “foi assim” em “eu quis assim” dá um sentido próprio ao que aconteceu. Apropriar-se do acontecido nos torna capaz de seguir adiante. Podemos ler na Gaia Ciência:

“Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas. Amor-fati: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores, Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!”

Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche escreveu que “o homem é algo que deve ser superado”. Longe de interpretações rasteiras, o pensador alemão está nos convidando à superação de nós mesmos. E isso não está numa tábua de leis ou valores, num livro ou num conselho. “O fraco quer que a mudança venha de fora porque não consegue operá-la de dentro”, consta na mesma obra. O forte consegue a verdadeira mudança, que brota de si. Para você, aluna querida, e para quem mais estiver pensando em desistir por conta das dificuldades ou sofrimentos, ouse ser forte, ouse dizer sim. “A vida só se justifica como fenômeno estético”, afirmou Nietzsche em O nascimento da tragédia. Se concordarmos com o bigodudo nascido em Röcken, a vida é uma obra de arte e você é artista de si mesmo.