Postado por Matheus Arcaro em 27/ago/2018 - Sem Comentários
(Por Alex Bessas. Originalmente no site A mulher do piolho)
Editora de um homem só e muitos prêmios, a Patuá, comandada por Eduardo Lacerda, é o selo do segundo livro de Matheus Arcaro. O lado imóvel do tempo é a segunda publicação do escritor paulista e seu primeiro romance. A sonoridade poética do título contrasta com um enredo que lembra os clássicos da literatura noir: seu protagonista, Salvador dos Santos, é um bancário aposentado, acumulador de fracassos, que, para cravar seu nome na história e sobreviver ao tempo decide que precisa matar gente. O livro no entanto é mais denso, sem em nenhum momento deixar se ser fluido, que a sinopse faz crer.
Da relação kafkiana com sua família, a mãe protetora é antípoda do pai, pastor evangélico que em todas as passagens censura Salvador; da descoberta do corpo e da sexualidade, quando, em um curto intervalo, o pré-adolescente se sente seguro de si até ser imediatamente constrangido; da dificuldade na sua lida com as mulheres; do casamento que acompanhou o mau êxito da carreira literária — uma de suas tentativas de se eternizar pela poesia; do trabalho mecânico em uma agência do Banco do Brasil; da aposentadoria e da solidão; todas idiossincrasias conduzem o Salvador a uma série de questionamentos existenciais. Circunstâncias que comungam para a tragédia daquele senhor que ao vislumbrar a morte a espreita teme ser engolido pela perenidade do tempo, esquecido em morte como já tem sido em vida.
Arcaro criou uma obra literária para ser consumida em um fôlego só. A construção do personagem é expressa não só por uma voz, mas por várias delas. Vozes soltas no texto, sem aspas, sem travessões. Blocos sólidos de diálogos, pensamentos, visões. O lado imóvel do tempo transita, sem obedecer uma ordem cronológica, entre as várias fases da vida de seu protagonista cinzento. Os capítulos passeiam por passado, presente e futuro. A cada momento, somos testemunhas dos fracassos do bancário aposentado e assassino em série que para se sentir vivo precisa ser visto, ser percebido. Mas o telefone da mulher amada não atende, o cachorro, único e melhor amigo, está morto. Sua única companhia é uma coleira velha.
Com os crimes, Salvador quer ser reconhecido. Ele expressa o desejo que os transeuntes se assombrem ao trocarem olhares com ele. Todavia, na verdade só quer ser visto, que o percebam. O tom existencial da obra ainda discorre sobre o homem-máquina, burocrata que sem razão trabalha sem nunca se encontrar. Estrangeiro de si mesmo, Salvador dos Santos é um trabalhador contemporâneo que não encontra sentido no ser, depois da fetichização do ter e de um lidar com o agora, sempre urgente.
O lado imóvel do tempo é, portanto, um livro que causa estranheza e identificação. O pânico de Salvador frente a estrutura social e econômica em que ele é descartável — sua aposentadoria revela mais o contentamento dos jovens companheiros de trabalho que o vêm como ultrapassado, do que pesar — é facilmente identificado entre relatos de não-ficção. Tanto que Bauman nomeou o fenômeno como vida líquida em seu compêndio de estudos publicados em 2005.
A narrativa traz a agonia do devir e da busca de dar sentido a sua existência para o plano literário: diferente, por exemplo, de Pessoa, seu cachorro, que existe por si, satisfeito com suas peculiaridades, Salvador age, loucamente, tentando “se achar”. Aliás, a escolha do nome do amigo-cachorro diz muito da obra. É na poesia do português Fernando Pessoa que Salvador se identifica. Em A escolha das horas, assinada por uma das personas do poeta, Álvaro de Campos, uma passagem sintetiza a ambiguidade de uma vida rasa, cansada e a busca incessante pela eternidade. “Não sei se a vida é pouco ou demais para mim”, escreveu Pessoa no que melhor caberia no epitáfio de Salvador dos Santos.