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O ser humano como artista de si

Postado por Matheus Arcaro em 31/out/2018 - Sem Comentários

Certo dia uma aluna me disse que passava por um momento difícil e perguntou se eu conhecia algum filósofo que tivesse utilizado seu sofrimento como material filosófico. Na hora fiquei comovido, baqueado e, feito uma flecha, veio-me Friedrich Nietzsche à mente. Respondi, citei algumas passagens, porém, analisando mais tarde com cautela, a resposta não me pareceu satisfatória. Respondi, então, em forma de texto público porque, afinal, é provável que seja útil a mais gente.

Nietzsche, quando jovem, foi admirador da filosofia de Arthur Schopenhauer. Para Schopenhauer, a vida não tem sentido porque o homem nada mais é do que uma manifestação da Vontade Una, uma força metafísica cega e irracional. Todo prazer é ponto de partida de uma nova aspiração. Em uma sentença célebre, fica claro o niilismo de Schopenhauer: “a vida não passa de um pêndulo entre o sofrimento e o tédio”. Em suma, viver é sofrer.

Com a publicação de “Humano, demasiado humano” (1878), Nietzsche rompe com seu “mestre”; o pessimismo schopenhauriano definitivamente não era uma boa contribuição para o ser humano. A vontade, para Nietzsche, não deve ser negada, mas afirmada, como criadora, uma vontade plural, múltipla, que ele chamou de “vontade de poder”. Eis que a noção de “afirmação da vida” começa a tomar força em sua obra.

Escreveu Nietzsche no Crepúsculo dos ídolos: “O que não provoca minha morte faz com que eu fique mais forte”. Embora tal frase tenha sido vulgarizada nos livros de autoajuda, ela tem um substrato potentíssimo.

A vida de Nietzsche não foi fácil. Sofreu com terríveis enxaquecas, dores nos olhos e no estômago, insônia e náusea. O suicídio passou várias vezes por sua mente. “Pois o terrível e quase incessante martírio de minha vida me dá sede de morrer”, escreveu em 1879. Nesse período, afirmou a amigos que passava três quartos de seu tempo com dores e o restante estafado. Todavia, os períodos de sofrimento mais profundo foram os de maior produção filosófica. A dor passou a ser uma preciosa ferramenta de transgressão e afirmação de si. Dois conceitos, entrelaçados entre si, são essenciais para percebermos o que a frase de Nietzsche realmente significa.

O primeiro, Eterno Retorno, é um norteador afirmativo da vida, da aceitação de todos os acontecimentos independente de seus resultados. Escreve Nietzsche na Gaia Ciência:

“E se um dia um demônio te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda inúmeras vezes; e não haverá nada de novo, cada dor, cada prazer, cada pensamento e suspiro e tudo o que há de pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência. O que farias? Rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou responderias: ‘Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!’ Se este pensamento adquirisse poder sobre ti, ele te transformaria e talvez te torturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: ‘Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?’ pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir? Ou então, como terias de ficar bem contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa eterna confirmação e chancela?”

Em termos sucintos: você teria coragem de repetir sua vida exatamente como ela foi até agora? De aceitar que se repetisse por toda eternidade cada alegria e cada tristeza, cada prazer e cada dor? O eterno retorno é uma navalha existencial. É a hipótese vital que nos incita à afirmação integral da vida.

O segundo, espécie de desdobramento do Eterno Retorno, é o “amor-fati”. De acordo com Nietzsche, é preciso amar o que aconteceu, ou seja, encontrar beleza no necessário, no inexorável, tanto para momentos de felicidade como para momentos de desespero. Transformar o “foi assim” em “eu quis assim” dá um sentido próprio ao que aconteceu. Apropriar-se do acontecido nos torna capaz de seguir adiante. Podemos ler na Gaia Ciência:

“Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas. Amor-fati: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores, Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!”

Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche escreveu que “o homem é algo que deve ser superado”. Longe de interpretações rasteiras, o pensador alemão está nos convidando à superação de nós mesmos. E isso não está numa tábua de leis ou valores, num livro ou num conselho. “O fraco quer que a mudança venha de fora porque não consegue operá-la de dentro”, consta na mesma obra. O forte consegue a verdadeira mudança, que brota de si. Para você, aluna querida, e para quem mais estiver pensando em desistir por conta das dificuldades ou sofrimentos, ouse ser forte, ouse dizer sim. “A vida só se justifica como fenômeno estético”, afirmou Nietzsche em O nascimento da tragédia. Se concordarmos com o bigodudo nascido em Röcken, a vida é uma obra de arte e você é artista de si mesmo.

Culto

Postado por Matheus Arcaro em 23/ago/2018 - Sem Comentários

O culto
incute no inculto
palavras e proibições.

Curte o cérebro
em promessas
sem premissas,
em pecados
sem perdão.

O culto
encurta os vãos.

Põe o porvir em
curto-circuito,
prostrado e mudo,
miúdo no chão.

Amor, s.m. (lat. amore)

Postado por Matheus Arcaro em 23/ago/2018 - Sem Comentários

Risquemos o amor dos dicionários;

apaguemo-lo dos livros;

extirpemo-lo dos discursos.

 

Qualquer definição de amor,

por mais completa que seja,

(ou pareça ser)

petrifica

congela

empalha

cadaveriza.

 

O amor não se dá aos rótulos.

Não se curva às caixas lexicais.

Não suporta os dois pontos ao seu lado direito.

 

Mas isso nunca foi um problema.

Pois amantes e amados

Sabem que o amor

só se despe no silêncio conjugado.

Afinal, gosto se discute?

Postado por Matheus Arcaro em 22/ago/2018 - Sem Comentários

Para Immanuel Kant, sim. Tanto é que ele dedicou uma obra inteira para as questões do gosto, a “Crítica da Faculdade de Julgar”, publicada em 1790. Para o filósofo supracitado é possível discutir o gosto porque uma discussão é diferente de uma disputa. Filosoficamente, uma disputa é uma batalha de argumentos que exigem demonstrações, a fim de que uma ideia prevaleça. Uma discussão é um processo de lapidação das opiniões, cuja finalidade é chegar a um acordo entre as partes. Assim, não se disputa sobre o belo, porém pode-se discuti-lo. Kant afirma ainda que a experiência estética é compartilhável e que a beleza é uma ideia universal da razão. Seu conteúdo e sua forma podem variar segundo circunstâncias históricas e segundo a subjetividade dos artistas, mas o sentimento de belo, fundamento do juízo de gosto, é universal.

Partindo das proposições kantianas, ou seja, se o sentimento de beleza é universal e passível de partilha, por que, atualmente, vivemos uma carência de esteticidade? Hoje em dia, conforme ilustra Marilena Chauí, se perguntássemos a uma pessoa comum o que é um artista, provavelmente ela elencaria nomes de atores de televisão ou cantores populares. Escritores, pintores e escultores com quase toda certeza não seriam citados. Para este indivíduo, diferentemente da concepção Romântica, o artista não é o gênio criador, inspirado divinamente; é alguém que realiza performances. Por que esta percepção? Na contemporaneidade, a sociedade do espetáculo está intrinsecamente ligada à Indústria Cultural. Com a necessidade de fazer girar o capital, a indústria da cultura, de maneiras diversas, distorce o conceito de beleza porque sua finalidade é atingir um número grande de pessoas. “Onde as massas têm o poder de decidir, a autenticidade se torna supérflua, nociva e prejudicial”, sentenciou Nietzsche. Sobre este ponto, a literatura é ilustrativa: por que livros, digamos, “palatáveis” (autoajuda, por exemplo) vendem muito mais do que livros complexos e bem escritos? Uma das respostas possíveis: a literatura genuína faz o leitor tropeçar. E não é todo mundo que está preparado para cair. Os “best sellers” são “best sellers” porque dizem o que o leitor espera. O menos preparado chama isso de “identificação” com a obra. “Puxa vida, este autor diz exatamente o que eu penso.” Não consegue perceber que o prazer da leitura está justamente em “fechar o círculo”. Este tipo de leitor jamais compreenderia Jean Paul Sartre, quando este afirmou que escrever é distanciar-se da linguagem instrumento e entrar na atitude poética, tratando as palavras como entes reais e não como símbolos estabelecidos. Seguindo o raciocínio sartreano, é lícito distinguir a linguagem: a cotidiana como “instituída” e a do escritor como “instituinte” (criadora, inventora de significações).

Não é exagero afirmar que o homem médio contemporâneo perdeu a capacidade contemplativa; mais que isso, perdeu a capacidade de distinção estética, a ponto de colocar no mesmo balaio Ivete Sangalo e Chico Buarque. As músicas (e as artes em geral) produzidas para a massa são estruturalmente muito parecidas. Isso é facilmente explicável: a Indústria Cultural desenvolve recursos técnicos para multiplicar aquilo que é considerado o traço mais marcante da obra de arte: ser única (é o que Walter Benjamim define como “aura”). Diz ele em seu clássico livro “A obra de arte na era da reprodutibilidade”: “Fazerem as coisas ‘ficarem mais próximas’ é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como superar o caráter único de todos os fatos através de sua reprodutibilidade”. O anseio da modernidade em  quebrar a transcendência dos objetos artísticos que provinha de sua unicidade fez esmaecer a aura.

Novamente trago Nietzsche: “Quanto mais superior é uma coisa em seu gênero, tanto mais raramente ela é bem sucedida”. Sob este viés, cai por terra qualquer discurso de “democratização da arte”. Mas, em contrapartida, tomando as palavras de Kant que atribuiu o status de partilhável à beleza, não seria válido dizer que a arte pode ser para todos, ainda mais se levarmos em conta o poder de disseminação da internet? Não é bem assim. Para penetrar nesse reino, o homem precisa de cultivo. Aquela pessoa cujo espírito é educado pelas artes é capaz de formular o juízo de gosto adequado; é capaz de compreender que a arte está muito além da utilidade e do prazer. Sim, é preciso que o indivíduo tenha instrumentos de julgamento; é preciso dar a ele possibilidade de escolha. Em termos simples: para que alguém afirme categoricamente que “pagode” é o seu o gênero musical preferido, faz-se necessário o conhecimento de outros tipos de música, como a erudita. Afinal, a comparação é o princípio mais elementar de conhecimento, como nos mostra Platão em sua célebre alegoria da caverna: se se conhece somente as sombras, acredita-se que elas sejam toda a realidade existente.

Talvez nosso erro esteja em querer julgar com as categorias da arte algo que, de antemão, não se propõe a ser arte, somente entretenimento. Michel Teló não quer produzir um sentimento de arrebatamento em nosso ser (a mais alta função da arte, segundo Kant).  Com a Indústria da Cultura, o entretenimento invadiu o terreno da arte e a distanciou muito do cidadão comum. Isso fez com que o “relativismo estético” tomasse proporções assustadoras em nossa cultura. Todavia, trilhar o caminho oposto, ou seja, estancar os limites da arte pode ser extremamente perigoso. As consequências podem variar desde o engessamento da expressão (uma espécie de totalitarismo estético) até os mais brutais massacres como o protagonizado por Adolf Hitler. Afirmava ele: “Muito tempo atrás o homem era lindo, mas a miscigenação e a degeneração poluíram a Terra.” Com a fixação de “embelezar o mundo”, Hitler arquitetou seu plano de “higienização da humanidade”, que culminou no holocausto.

Atenuados os dois extremos (dogmatismo e relativismo), em quais veredas, então, podemos vislumbrar a arte? Obviamente, as respostas são inúmeras. Talvez a definição de artista de Merleau-Ponty nos ajude. Dizia ele que o artista é aquele que fixa e torna acessível aos demais humanos o espetáculo de que participam sem perceber. Ou a de Fernando Pessoa, que se faz ouvir pela boca de Alberto Caeiro: “o artista procura o pasmo essencial, que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras”. A arte pode e deve ser a manifestação da essência da realidade que está amortecida em nossa existência diária. Contudo, isso não significa atribuir à arte um papel moralizante.  A arte não deve melhorar ninguém, não deve sequer ser agradável. Theodor Adorno toca nesse ponto ao escrever em sua “Teoria Estética”: “À aceitação conformista da concepção corrente da obra de arte como bem cultural agradável, corresponde um hedonismo estético que expulsa da arte toda a negatividade para os conflitos pulsionais da sua gênese…” A arte deve, sim, mostrar a condição humana perante a vida; mostrar o humano em todas as suas possibilidades, inclusive na esfera mais trágica e horrorosa. Parafraseio novamente Nietzsche: “Só a arte pode transformar a ideia de repugnância sobre os aspectos horríveis e absurdos da existência em representações com as quais se torna possível viver.” Para Nietzsche, a arte é um “estado de vigor animal”, a mais visceral afirmação da vida. Sim, amigos! O que ele nos propõe é uma mudança de perspectiva sobre a própria vida: uma ontologia estética. A vida como arte, movimento e pulsão; o homem, concomitantemente, como artista e obra de arte. E assim toma corpo o seu brado: “a vida só se justifica como fenômeno estético”.

 

REFERÊNCIAS

 

PLATÃO. A República

KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade de Julgar

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia

_________________. Assim falou Zaratustra

ADORNO, Theodor. Teoria Estética

BENJAMIM, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade

SARTRE, Jean Paul. O que é a literatura?

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia

Reflexões e frases curtas

Postado por Matheus Arcaro em 15/ago/2018 - Sem Comentários

A morte é algo natural. A consciência da morte é algo absurdo. Por isso, de todos os animais, só os homens inventaram deuses, vida eterna e salvação.

 

Cansado de tanto profissionalismo. Da vida, quero ser amador.

 

Só quem despe a palavra penetra no útero da poesia.

 

Vida: punhado de casos acasalados pelo acaso.

 

Se seu mundo é do tamanho de um cômodo, com três passos você acredita que é rei.

 

Grito o amor pro meu coração não enrouquecer.

 

O coração é um músculo. Se não for estimulado, tende a se atrofiar.

 

Mergulhe de cabeça no amor. Mas antes verifique a profundidade da outra pessoa.

 

A verdade é uma metáfora com amnésia.

 

O mundo é um cárcere. Por isso fujo pra dentro de mim.

 

Os milagres moram na umidade das virilhas.

 

Creio nas palavras sujas como alvejantes do mundo.

 

Realidade é a imaginação de terno e gravata.

 

A arte é mais verdadeira que a ciência justamente porque assume seu caráter ficcional.

 

É democracia o coelho escolher entre a onça e a raposa?

 

Há um ponto em que filosofia e arte se encontram. Este ponto eu chamei de vida.

 

A vida é um idoso desarmado na guerra.

 

– Esse menino é muito estranho. É autista?

– Não, senhor. Ele é artista!

 

Deus levou seis dias pra ler a obra completa de Shakespeare. No sétimo, Ele não cabia em si de tanta inveja.

 

Só confio em almas que têm desejos carnais.

 

Acreditar que sexo seja algo pecaminoso é como supor que deus tenha criado abelhas diabéticas.

 

A mentira tem braços longos, perfeitos pra abraçar pessoas carentes.

 

Entre as palavras “sucesso” e “mediocridade” há uma distância menor do que se imagina.

 

Quando o verbo se fez carne, Deus tornou-se vegetariano.

 

Por vezes, amar é como regar uma flor de plástico.

 

A vida é muito curta pra perdermos tempo tentando não perder tempo.

 

Tolerância: modo politicamente correto de desprezar.

 

– Quer ficar doente, menino? Vai lavar direito essa mão!

– Mãe, no tempo de Adão nem existia sabonete e ele viveu 930 anos!

 

Que a vida desvie do destino e tire o acaso pra dançar.

 

Normalidade: uma navalha criada há alguns séculos, amolada diariamente pelos homens de deus, da lei e da ciência.

 

Mais concertos para menos consertos sociais..

 

O artista é aquele ser capaz de sobrepor o devir ao dever.

 

— Você acredita em Deus?

— Não muito. Com tudo o que Ele tem aprontado, tô mais esperto.

Despedida

Postado por Matheus Arcaro em 15/ago/2018 - Sem Comentários

Senti o perfume da saudade nos teus olhos.

Pressenti que não passaríamos de um passado

desprovido de peso,

nos teus beijos empoeirados,

nos teus abraços em branco e preto.

 

No lençol,

ato consumado,

eu não era mais do que um retrato pálido,

um fato

avesso a argumentos.

 

Tu sabias que eu sabia.

Mas sempre preferiste os palcos à ciência.

Eu também.

Que bem nos fez esse fingimento mútuo:

o que é o amor, senão uma farsa partilhada?

 

O sol subiu e afundou meus minutos:

era tempo, tinhas que ir,

fazer-te completa como uma libélula.

 

Saíste sem mala

sem palavra,

sem sorriso,

deixando-me aos vãos da vida.

 

Desde aquela noite,

Evito pensar em ti.

Talvez,

Pra não gastar as lembranças

que tenho de mim.

A criança é uma noite

Postado por Matheus Arcaro em 15/ago/2018 - Sem Comentários

A criança é uma noite
seca
na veia da cidade.

Com o vazio
encostado na vitrine,
derrama o futuro
pelos olhos:

 

Terá ela
um dia,
em seu estômago,
um pedacinho
daquela padaria?

Feuerbach e a crítica à religião

Postado por Matheus Arcaro em 11/ago/2018 - Sem Comentários

Talvez Ludwig Feuerbach seja mais conhecido pela influência que exercera sobre Karl Marx do que propriamente por sua obra. Mas o pensamento do filósofo alemão é deveras denso e profundo para ser reduzido a apêndice de Marx.

Antes de falarmos propriamente de Feuerbach, cabe uma breve contextualização histórico-filosófica. Com a filosofia de Friedrich Hegel, no início do século XIX, a especulação metafísica chegou ao ápice. Depois disso, o idealismo alemão começou a sucumbir sob as duras críticas dos filósofos que o sucederam, entre os quais Feuerbach e Marx, por um lado e Schopenhauer e Nietzsche, por outro. Enquanto os primeiros transformaram o idealismo absoluto hegeliano, aos poucos, em materialismo histórico, Schopenhauer e Nietzsche, por sua vez, se colocaram em oposição radical ao reinado da razão de Hegel, inaugurando a filosofia da Vontade.

Partamos, então, para Ludwig Feuerbach, que nasceu em 1804 no país que seria a Alemanha. Nos primeiros anos de estudo foi profundamente marcado pelo pensamento hegeliano (abandonou os estudos de Teologia para tornar-se aluno de Hegel, durante dois anos, em Berlim). Passado esse tempo, tornou-se um crítico severo da filosofia do mestre e, em 1828, começou a estudar ciências naturais. Dois anos depois publicou anonimamente seu primeiro livro, “Pensamentos sobre Morte e Imortalidade”, obra na qual ataca a ideia da imortalidade, sustentando que, após a morte, as qualidades humanas são absorvidas pela natureza. Em 1839 publicou “Sobre Filosofia e Cristianismo” que discutia a essência antropológica de toda religião, uma das obras que mais influenciou Karl Marx. Ainda publicou vários livros, dentre os quais podemos destacar “Crítica à filosofia hegeliana”, de 1839, “Princípios da filosofia do futuro”, de 1844 e “Espiritualismo e materialismo”, de 1866. Morreu em 1872.

Como adiantamos brevemente, Feuerbach tece veementes críticas à filosofia de Hegel. De maneira didática, podemos reduzi-las a dois pontos principais. O primeiro refere-se à valorização hegeliana do abstrato em detrimento do concreto e real. De acordo com Feuerbach, a filosofia idealista de Hegel é ausente de determinações concretas, pois gira em torno do conceito e da lógica. O empírico, enquanto presente, é concebido por Hegel como aquilo que deve ser suprimido em prol do abstrato. O segundo ponto diz respeito ao método de investigação. Feuerbach acusa Hegel de pressupor a Ideia Absoluta, cujas fases intermediárias não passam de simulações forçadas, mas não fundamenta tal noção.

Feuerbach não nega integralmente o idealismo hegeliano. Contudo atribui a ele uma interpretação materialista, conforme a qual, as leis da realidade são também leis do pensamento. Em outros termos: Feuerbach substitui o Espírito de Hegel pelo gênero humano.

Desde as obras precoces, Feuerbach submente a religião a exames severos. No livro “Pensamento sobre a morte e sobre a imortalidade”, de 1830, afirma que a noção da imortalidade individual só apareceu com força na modernidade. Nem no mundo greco-romano, nem na época medieval, o problema da imortalidade configurava uma questão fundamental da existência. O homem da época greco-romana não se reconhecia como consciência individual, considerando-se como parte do todo, da polis. O homem medieval, por sua vez, não se via envolvido com problema da imortalidade, apesar de o tema ser artigo da fé. Vivia a sob a responsabilidade da Igreja, já que ainda não tinha desenvolvida a consciência da sua individualidade. Foi depois do pensamento de René Descartes que tudo passou a girar em torno do indivíduo; até Deus foi transformado em pessoa: um ser que se difere do homem por uma questão de grau. Eis um dos pontos centrais da crítica feuerbachiana à religião. Em “A essência do cristianismo”, ele afirma que “em Deus existem as mesmas determinações que existem no homem, só que em Deus elas são infinitas e finitas no homem”. Em outro trecho, o pensador evidencia o mesmo problema, tomando como apoio a noção de consciência: “A consciência que o homem tem de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo.” 

Feuerbach assevera que a religião cristã suscita e reproduz o egoísmo. E para sustentar tal tese, ele lança mão, dentre outros argumentos, da doutrina criacionista. Segundo o pensador, o criacionismo não poderia ter nascido entre os gregos, mas somente onde os homens concebem a natureza como “nada”, como produto e objeto de uma vontade subjetiva. Monoteísmo e criacionismo são fermentadores da subjetividade livre. E a crença em um Deus pessoal e transcendente implica necessariamente na exaltação da personalidade fechada, indiferente às determinações substanciais do mundo e ao laço com o outro. Em suma, esse Deus corresponde à ideia da personalidade humana como subjetividade separada do mundo e abstraída de sua constitutiva unidade com o outro.

Embora a obra supracitada seja intitulada “A essência do cristianismo”, Feuerbach disfere sua crítica não somente ao cristianismo, mas a toda espécie de religião. Diferentemente de Hegel, que considerou a religião como grau inferior da Filosofia, Feuerbach concebe-a em oposição à filosofia. Desse ponto de vista, todos os mistérios e milagres que a religião enfatiza nada mais são do que verdades naturais às quais a consciência religiosa confere imagens. Tais imagens são produto de uma consciência alienada da sua essência que projeta em um soberano transcendente a sua própria essência humana. Essa tese fundamental do livro é tratada por Feuerbach em dois aspectos: antropológico e teológico. O primeiro configurando a religião verdadeira e o segundo, a não-verdadeira.

Quanto ao aspecto antropológico, Feuerbach afirma que a religiosidade é um atributo essencial da natureza humana, que se define como consciência. Contudo, não como consciência de si, como indivíduo, mas como consciência do gênero humano. A esse propósito, a comentadora Sophia Rovighi esclarece: “Ter consciência de si como espécie significa ter consciência da própria essência universal, da própria humanidade.”  Neste sentido, fica evidente que, para o pensador, o objeto da teologia, Deus, é uma essência objetivada do homem. A religião cristã é a relação do homem com a sua essência transformada em outra. Diferentemente do animal, “o homem é, ao mesmo tempo, Eu e Tu e pode se colocar no lugar do outro justamente porque não é apenas individualidade, mas também espécie que, no fim das contas é a sua essência”. O homem religioso, por ser alienado da sua essência, transfere-a para um ser transcendente, isto é, Deus. A consciência religiosa é uma consciência infantil que, ao crescer e amadurecer, naturalmente se transformará em filosofia. Uma prova dessa confusão entre Deus e a essência humana, ele descobre no tratamento antropológico de Deus por grande parte das religiões. Desse ponto de vista Deus é pessoa: pai, filho, santo, bom, justo, etc. Determinações essencialmente humanas são atribuídas ao soberano divino. A religião é, portanto, antropologia que esqueceu suas raízes.

O aspecto teológico revela-se para Feuerbach como distorção e manipulação da origem antropológica da religião. Partindo da doutrina da salvação, ela reduz tudo ao núcleo do indivíduo que, para se salvar e com medo da punição, adere a moral religiosa sem questionamento. Apesar de reconhecer na figura de Deus a soma de todas as perfeições, a consciência religiosa empobrece e inferioriza o homem: “Para enriquecer a Deus, o homem deve empobrecer-se; para que Deus seja tudo, o homem deve ser nada.”  Essas reflexões sobre a Teologia seriam ampliadas mais tarde pelas “Lições sobre a essência da religião”, discursos proferidos em Heidelberg entre 1848 e 1849 e publicados em 1851em que a sua tese principal é que o sentimento de dependência do homem está na base de toda religião.

Diante desse panorama, fica a pergunta: qual é a saída, então? O processo de desmistificação da religião coloca o homem numa situação, digamos, curiosa. Por um lado, ele já não toma a sério os dogmas religiosos e abandona, aos poucos, a sua devoção. Por outro, deixado a si mesmo, ele precisa de uma esperança que o torne confiante no seu futuro. Eis que emerge a importância da Filosofia.  Feuerbach acredita que a filosofia deva assumir o protagonismo e conduzir o homem à sua essência, tese que ele enfatiza na obra “Princípios de uma filosofia do futuro”.

A principal missão desta nova filosofia é responder à pergunta o que é o homem? Diferentemente das filosofias anteriores (principalmente o Idealismo) que vieram atender a uma necessidade filosófica, a filosofia proposta por Feuerbach deve responder uma necessidade humana. E, uma vez superada a religiosidade, o homem deve abandonar a Bíblia e filiar-se à razão.

Mas isso, obviamente, não significa submeter tudo à razão como propusera Hegel. Feuerbach aproxima teologia e filosofia especulativa, já que, partindo dos postulados da teologia comum, que considera Deus como pessoal e transcendente, a filosofia especulativa põe-no na Terra, tornando-o presente e determinado. Desse modo, ele submete à crítica a tentativa da filosofia especulativa de identificação de Deus com o pensamento, uma vez que este não é criador de realidades, mas formador de conceitos abstratos que por si mesmo nada podem realizar. Afirma ele: “O real em sua realidade, ou o real enquanto real, é o real enquanto objeto dos sentidos, é aquilo que é sensível (…). Somente um ser sensível é um ser verdadeiro, um ser real. Somente os sentidos e não o pensamento por si só, nos dão o objeto em seu verdadeiro sentido.”

As formas da existência material e natural são o espaço e o tempo. Essas formas são concebidas como leis tanto do ser como do pensamento. Sem essas leis toda sensação, vontade e pensamento não passariam de ficções vazias. Portanto, sem matéria não existiria conteúdo a ser pensado. Disso emerge um conceito essencial na filosofia de Feuerbach: o amor.

Para Feuerbach, amor é materialismo que, por sua vez, envolve uma plena essencialidade do mundo sensível. E só o amor é capaz de resgatar a “essência humana do homem” deformada pela fantasia da religião (principalmente por atribuir esse sentimento a um Deus pessoal) e pela especulação filosófica. Essa “essência genérica” racional, amorosa e comunitária, constituída por nossas excelências e potências voltadas ao outro é fundamentada nos sentidos e não no pensamento. Novamente as palavras do pensador corroboram tal noção: A nova filosofia fundamenta-se na verdade do amor, na verdade da sensação. Ela representa o coração elevado ao plano do intelecto. O coração não quer objetos e entes abstratos, metafísicos ou teológicos, quer objetos e entes reais e sensíveis.” 

As relações humanas, que outrora eram presididas por Deus, devem ser regradas por esse homem do amor, pela essência humana presente em todo homem. Para concluir, uma frase que, apesar de retórica, sintetiza esse sentimento humano: “Onde não há amor, não há verdade; somente tem valor quem ama. Nada ser e a ninguém amar é a mesma coisa. ”

 

Não morra em época de Copa do Mundo

Postado por Matheus Arcaro em 03/ago/2018 - Sem Comentários

Se você faz parte do time das super hiper mega pop stars, desconsidere o conselho do título. Caso contrário, previna-se. Tome seus remédios à risca, afira constantemente sua pressão, durma bastante, alimente-se de acordo com o que os nutricionistas orientam na TV e o mais importante: reze, ore, clame pelo amor de Deus.

Esticar as canelas em pleno Mundial é pedir para ser escalado no elenco dos esquecidos. Mais: você corre o risco de não ter sequer uma homenagem singela antes que os vermes comecem seu trabalho. Contudo, o oposto disso também é possível: ser lembrado por muito tempo como o grande empata foda. Afinal, nessa vida mercadológica, pouquíssimas são as vezes que nos permitimos encher a cara em plena segunda-feira à tarde.

Seleção em campo? Não se atreva nem a passar mal. Onde já se viu fazer os amigos e parentes, fervorosos patriotas, trocar o amarelo canarinho pelo preto urubu? O mais sensato é segurar as pontas e esperar por um evento menos relevante para o país. Quem sabe, em 14 de agosto, dia da Unidade Humana ou em outubro nas eleições presidenciais!

Os que almejam ao menos um cortejo com as gerações futuras, atenção redobrada, já que o seguro morreu de velho. É de bom tom não bater as botas entre meados de junho e meados de julho de qualquer ano.  Afinal, Michael Jackson só existe um, rara exceção, salvo pelo seu quilate. Mesmo assim, há quem diga que as vuvuzelas africanas abafaram as homenagens pelo aniversário de morte do cantor.

Deus, brasileiro que é (com muito orgulho, com muito amor), vive um terrível paradoxo este ano: ou assiste aos jogos ou atende às preces dos súditos, principalmente as que lamentam as enchentes do nordeste. Mas, se me permite dizer, Senhor, essa dificuldade é apenas aparente. Resolvê-la-ia se fizesse uso de Sua Onipresença. Assim, assistiria aos espetáculos sem iguais da nossa Seleção e, ao mesmo tempo, repreenderia sua filha Natureza por suas traquinagens no nordeste do Brasil. É matemático: quanto mais orações atendidas, menos almas a serem julgadas. Mas como o Senhor escreve certo por linhas tortas, contento-me em esperar até o apito final para analisar a súmula.

Lamento não ter escrito esse tratado antes. Poderia tê-lo enviado ao ilustríssimo senhor José Saramago. Justo o senhor foi cometer essa deselegância? Era propícia a hora de alargar a intermitência da própria morte, mas não. Apressou-se em conferir pessoalmente se a descrição do Cristo do seu Evangelho batia com a das Sagradas Escrituras. Foi-se nessa época por modéstia, diriam seus leitores. Homem das palavras que era, não creio. Seja como for, entre uma notícia de gol e outra da ranhetice do técnico anão, pouco se falou da morte do único escritor de língua portuguesa a ganhar o prêmio Nobel de Literatura.

A morte é um fato. E, se contra fatos não há argumentos, não vale a pena terminar este texto. Todavia, como brasileiro, não desisto nunca e trago à tona o parágrafo derradeiro e prescritivo:

Com ufanismos futebolísticos e eufemismos sociais, continuamos a empurrar com a barriga as mazelas do brasileiro, sedado a pão e circo. Circo vazio, diga-se de passagem, já que os palhaços, os mágicos e os malabaristas, há tempos velam a Esperança do povo com a bandeira do Brasil sobre o caixão.

Meus 30 anos

Postado por Matheus Arcaro em 03/ago/2018 - Sem Comentários

Contava eu com 14 anos quando, um dia na escola, projetei-me com 30. A imagem foi assustadora: um velho de terno e gravata, testa vincada e um olhar baço que via o próprio futuro como um ser pálido e mirrado.

Hoje pela manhã, 05 de janeiro de 2014, a projeção bateu à minha porta. E trouxe entre os seios um Matheus bem diferente do que aquele que o adolescente cheio de espinhas imaginou.

Dizem que fazer 30 anos é um marco. Porém, como os marcos não existem fora do âmbito da convenção, posso supor que sou hoje o que era ontem acrescido das experiências que preenchem esse hiato. E esses hiatos somados fazem de mim um homem que, se encontrasse uma lâmpada mágica entre os desejos entulhados, jamais pediria para voltar aos 20 anos. Por quê?

Porque aprendi que viver é qualquer coisa inominável, mas irrevogável e intransferível; uma coisa bem diferente do que somos condicionados a fazer desde pequenos. Aprendi que sou um porvir que cessará somente quando eu deitar num caixote marrom. Aprendi que “quem faz o destino é a gente, na mente de quem for capaz”: que me formo no tempo, de modo contínuo e constante, sem auxílio de quaisquer instâncias metafísicas. Aprendi que a lamentação não tem o poder de revogar o passado e que a esperança é uma dama ardilosa, excessivamente maquilada. Aprendi a amar intensamente o presente e ver a vida em sua inteireza como uma tela sublime, cujo pintor (que sou eu) continuará suas pinceladas enquanto respirar.  

Contudo, sei que ainda só enxergo o mundo pelo buraco da fechadura. Sinto como se estivesse no primeiro terço da leitura de um livro imenso mas, que de tão bom, torço para que não acabe. Por isso vejo os próximos 30 anos feito uma criança em frente à vitrine de brinquedos: quero reforçar os laços afetivos que já costurei e, principalmente, criar novos para que o meu pau-de-fitas fique cada vez mais colorido. Quero me estabelecer como escritor, concluir mestrado e doutorado. Quero me enfiar de cabeça em tudo o que é criação humana. Quero abrir meus poros para o “Sentimento do mundo”. Quero, enfim, viver cada segundo pensando no dia em que eu estiver com 90 anos e, com a caneta ainda em punho, olhar para trás e afirmar de boca cheia: valeu a pena!